terça-feira, outubro 05, 2010

Muralha - Cap. II

Essa é a segunda parte de uma história que eu escrevi e postei alguns dias atrás.
Sim, ela é grande pra cacete. E sim, a parte anterior também é. Mas eu asseguro que a leitura é fácil e rápida.
De qualquer forma, caso haja realmente interesse, aconselho que leia a primeira parte desse conto se quiser entender alguma coisa do que está acontecendo.

Você pode ir diretamente pra lá:

Se tiver coragem, boa leitura.


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(...)

Desci rapidamente os lances de escada que levavam até o térreo onde o portão se abriria. Comecei a pensar em como começar alguma conversa com os bandidos, como fazê-los entender que foi um grande erro ameaçar a nossa cidade. “Oi caras maus, vocês acabam de fazer a pior merda de suas vidas vindo aqui bater no portão da minha cidade e incomodar o meu tão raro sono! Meus parabéns! Tickets para os quintos dos infernos para todos! Venham pegar!” – Nah. Não sou esse tipo de cara. Fazer ameaças de motherfucker... não é o meu estilo.
Talvez eu fosse só esperar que eles me irritassem o suficiente pra que eu fosse violento. Mas isso também não era muito a minha cara. Sou bastante pacífico. De qualquer forma, lutar irritado não ia me favorecer.

Enquanto eu pensava, me surpreendi ao me ver de frente ao portão. Desci rápido demais, não deu tempo de pensar em diálogo. Talvez eu devesse só ir direto ao ponto.

Finalmente acenei para cima, onde eu sabia que tinham sentinelas e que eles passariam a mensagem pra lá. Um giro com a mão, dedo indicador apontando pra cima – “Manda ver” era como diziam antigamente. Bem antigamente mesmo.

Um estalo metálico alto e os grandes portões de metal foram se afastando, se arrastando para o lado, pra dentro da muralha espessa. Abriram o suficiente para uma pessoa passar.
O sol ainda não saía no horizonte, então de onde eu estava ainda era escuro. A gangue ainda não me via, mas eu os via.
Droga, o líder com a arma acabava de se colocar atrás de três dos cabeludos, e um deles era o do machado. Não daria pra atacar ele primeiro.

Andei até o lado de fora.

No alto da muralha, na sala de comando, Milena respirava fundo. O portão já estava meio aberto e logo eu passaria para fora. Ela cruzou os dedos e apertou os lábios em uma linha reta. Eu não vi nada disso. Mas sei. Somente sei. Logo ela correria da sala e iria se juntar aos arqueiros na muralha.

Cheguei do lado de fora da muralha e esperei o portão se fechar atrás de mim antes de dirigir a palavra a algum deles. Todos pareceram apreensivos e surpresos por apenas um homem ter saído da fortaleza.

O trovão produzido pelo portão se fechando pareceu acordá-los de seu transe, e o líder se pronunciou:
- Hahaha! Só mandaram você aqui pra negociar nossa entrada? Ou esses caipiras acham que somos canibais e mandaram um sacrifício? Hahahahaha! – sua risada foi copiada pelo resto do bando.
- Eu agradeço se você puder parar de rir, seu bafo podre deve estar incomodando meus arqueiros no alto da muralha – apontei pra cima com a cabeça.
Todos eles olharam pra cima e suas risadas murcharam.
O líder cuspiu no chão para o seu lado e me olhou desafiador.
- Seus arqueiros? Então, senhor-lider-e-sacrificio, o senhor deve saber que essas porcarias não vão acertar a gente aqui, não com isso – apontou para placas de metal que eles carregavam penduradas nos ombros. Imitações de escudo.
- Minha intenção é que eles peguem algum idiota de vocês que tentar fugir. – falei paciente.
Eles olharam uns pros outros.
- Idiota? Não conhecem essa palavra? – eu provoquei. Jurava que um deles começava a espumar pela boca.
- Bom, parece que você veio querendo confusão não é, rapazinho? – falou a voz grossa do homem do machado. Eu tinha sérias dúvidas de que ele sequer sabia como proferir sons. – Deixa eu acabar com esse aqui, chefe? – ele se virou para o cara da arma.
- Vai em frente! Hahaha! Ele que sirva de exemplo para os outros caipiras.

Ajeitei minhas mangas. Não saquei a espada ainda. Ela não seria muito útil contra um machado desse tamanho. Eu teria que ser esperto e utilizar outros recursos.

O grandão fechou a cara e partiu em carga com seu machado levantado, vindo em linha reta.
Muito fácil.
Seu machado descreveu um arco totalmente reto em direção ao meu corpo, e provavelmente me partiria ao meio se eu tivesse ficado no mesmo lugar. Esperei até o último instante para desviar e esquivei para trás e pra esquerda, na diagonal, só arrastando os pés. Meus braços se moveram como relâmpagos enquanto duas adagas voavam das minhas mangas e atingiam a mão direita do grandalhão.

O grito dele foi alto e pareceu ser mais assustador que os ferimentos que foram causados nele. Sua mão direita agora era inútil e seu machado estava fincado no chão onde eu deveria estar.
Ele ainda tentava virar na minha direção quando meu pé voou na lateral de seu rosto. Consegui sentir o maxilar dele estalando e no instante seguinte o homem estava estatelado no chão levantando bastante poeira. Esse talvez não acordasse mais, dependendo do quão resistente ele era ao veneno que eu costumava colocar nas minhas adagas.

Só mais oito.

Os dois da frente, ainda de olhos arregalados, tentavam sacar suas pistolas. Se eu bem me lembro, uma das regras de combate era não mostrar desespero. O oponente perde respeito pela sua habilidade. Esses dois com certeza estavam desesperados. Deviam estar a mais de uma semana sem usar suas drogas da confiança.

Até agora tudo tinha sido tão rápido que ninguém sequer tinha tentado usar sua imitação de escudo.

Com quatro passadas rápidas eu me coloquei entre os dois, que mal puderam me ver saindo do meio da poeira, não fosse o rastro que deixei no ar. O da esquerda se afobou e tentou atirar, mas sua arma falhou. Sem pólvora, como eu previ.

Sorrindo, me lancei para o da direita, não querendo arriscar que esse disparasse também. O bastardo ainda não tinha levantado a arma quando eu o atingi com uma cotovelada no queixo. Suas pernas fraquejaram imediatamente e eu segurei seu corpo pelo braço estendido em cima do meu ombro, apontando a arma dele para o bandido cuja arma não funcionava. Testei o gatilho e BLAM, essa sim funcionava. Mal, mas funcionava.
O tiro atingiu o rapaz no peito e o derrubou com um baque doloroso.
Pelo cheiro no ar, percebi que eram balas de sal. Deve ter machucado pouco mais do que a queda, mas ele era um viciado fraco e permaneceu no chão.

Eu ainda segurava o dono da arma, que já parecia desmaiado no meu ombro. Tudo estava parecendo mais fácil do que eu tinha imaginado. Talvez esses patifes nunca tivessem enfrentado um combate de verdade.
Por cima do ombro do desmaiado, vi o chefe apontando sua própria arma para mim. Mas eu estava com as costas protegidas pelo cabeludo desmaiado e senti dois impactos nas costas. Os impactos coincidiam com o som alto dos estouros da arma do chefe sendo disparada.
O cheiro de pólvora ficou forte no ar, misturado ao odor do sangue e suor do defunto às minhas costas.

“Bom, já foram duas balas. Falta uma.”

Arremessei o corpo molenga no atirador e tive tempo de notar a formação à minha volta: Três deles abatidos. O chefe com uma bala na arma e ainda caindo com o defunto em cima de si. Mais cinco vindo com facões nas mãos. Dois são punks cheios de piercings, três cabeludos, um deles não sabe nem segurar o facão direito. O outro mal consegue colocar uma perna na frente da outra pra correr. Me senti enfrentando uma trupe de crianças com pedaços de isopor na mão.

O primeiro punk do moicano era o mais rápido e cruzou espadas comigo primeiro. Não que ele realmente tenha percebido que eu tinha sacado minha espada, dada a expressão de surpresa dele antes de ser atingido por um chute veloz na virilha enquanto as espadas soltavam um som agudo no ar.
Passei por esse só com esse chute e encarei os próximos dois segurando minha espada com as duas mãos.

A falta de organização de batalha deles me fez sentir vergonha de ser um ser humano por uns instantes. Eles atacaram ao mesmo tempo, e tudo que eu tive que fazer foi rolar entre os dois para que eles chocassem de leve seus facões enferrujados. Tive espaço atrás deles, e o líder começava se levantar.
Mas a vantagem era minha: haviam três idiotas servindo de escudo entre mim e a arma do líder deles.

Quando terminei o rolamento, o outro punk, com o facão um pouco menos enferrujado, me esperava com uma cara de prazer sádico. Seu braço baixou a lâmina veloz contra meu ombro esquerdo, mas ela nunca encostou nele.
Usando minha espada como um escudo, eu interceptei a lâmina inimiga ao mesmo tempo em que levantava com o impulso de um pulo. O arranhar da katana soltando faíscas por toda a extensão do facão terminou no grito de dor do rapaz enquanto perdia os dedos que seguravam a arma. Por sorte minha espada só pegou de raspão em seu rosto, fazendo um aranhão reto ali, mas nada grave.

Não tive tempo de finalizar este também, já que o último dos rapazes já me atacava.

O ataque veio duas vezes com rapidez, e percebi que esse tinha o mínimo de treino com a arma que usava. Talvez fosse um açougueiro antes de ser um maldito viciado que entrou pra uma gangue de derrotados em alguma cidade podre. Seus ataques eram retos e ele tinha o braço forte.

Usei o primeiro ataque pra ganhar espaço na direção da moto, passando do lado dele. Consegui me virar agora e encarar a distância que eu percorri enfrentando os rapazes.
Agora eu estava de frente pra todos novamente, lutando com esse último enquanto os outros iniciavam outro ataque. Eu tinha que acabar com ele rápido antes que todos me cercassem demais. Ao fundo, o último homem, o chefe, tentava mirar com sua arma, mas os outros ainda tampavam sua visão. Ao menos ele tinha sido esperto suficiente para pegar seu escudo se proteger de uma possível chuva de flechas.

Os ataques sucessivos e agressivos do último continuavam, enquanto eu pensava em como acabar com todos de um modo mais rápido.
Decidi acabar logo com esse que estava dando trabalho.

Comecei a atacar pra testar a habilidade de defesa desse. Ataquei pelos lados, como quem corta um mato alto pra ganhar espaço. Ele se defendeu bem da maioria dos ataques. Com uma espada na mão esse cara poderia ser perigoso, mas a espada estava em minhas mãos e eu tinha a vantagem do alcance maior. Soltei um chute veloz por baixo do sobretudo e ele conseguiu se afastar um pouco, então usei a vantagem da espada para dar um corte fundo no antebraço dele. Ataquei com a espada só na mão esquerda e estoquei, produzindo o corte que imediatamente começou a sangrar generosamente.
Por um instante ele olhou para o braço, e foi tempo demais. Seu cérebro deveria já estar comprometido pelas drogas, e ele demorou muito a reagir.
Chutei sua mão e o facão voou de leve, sendo agarrado pela minha mão direita, e finalizei a luta com um giro e dois cortes grandes no tórax do corpo que caía.

O sangue dos cortes ainda voava durante o giro enquanto eu observava dois deles vindo na minha direção, já bem próximos.
Depois desses, só o chefe armado. Um deles ficou um pouco para trás tentando não pisar nos corpos a sua frente.

Dei uma passada larga para a direita, ficando de frente para os dois atacantes e ainda protegido da mira do chefe lá de trás.

Os dois na minha frente já tinham mostrado que não sabiam como usar uma arma branca, e tudo foi confirmado no momento em que atacaram.

Um deles tentou me atacar pelo lado esquerdo enquanto eu media forças contra seu companheiro, utilizando minhas duas armas como uma tesoura.
Um sorriso quase aparecia no seu rosto quando ele percebeu que não havia me acertado. Seu ataque foi interceptado pela ponta de minha bota, onde havia uma placa de metal especialmente localizada pra esse tipo de situação. O impacto fez a lâmina inimiga voar para cima em um ângulo esquisito, e os dois se assustaram com a trajetória dela.

Foi tempo suficiente pra que minha “tesoura” atravessasse a defesa do inimigo e destruísse qualquer capacidade dele de respirar.

Ignorei o atacante que tentava recuperar seu facão enferrujado e disparei na direção do chefe armado, que agora não tinha nenhum empecilho em sua mira.
Disparei com uma fúria súbita, correndo em ziguezague com a katana posicionada nas costas do meu braço e o facão em riste na outra mão. Joelhos flexionados e postura curvada dando impressão de uma bala indo na direção do inimigo.
O assustado projeto de líder tentava mirar a arma enquanto recuava para mais perto da muralha. O escudo que protegia a cabeça e as costas tremia, e a falta de equilíbrio dificultava mais ainda a mira. Ele não queria perder o tiro e não queria ser atingido por uma carga de fúria como a que ele testemunhava.
Ele deu mais um último passo pra trás quase tropeçando e com uma face que duvidava se eu era louco ou não e que por isso temia desesperadamente por sua vida.

Bradando a vitória, eu berrei “AGORA!” enquanto arremessei o facão contra o homem armado.
E com vários sons de madeira pontiaguda cortando o vento, o combate finalmente terminou.

O líder deu um salto estranho para o lado para desviar do facão que mirava seu tórax e não teve tempo de sequer atirar. Ele largou o escudo na tentativa de não dar de cara com o chão ao se jogar. Neste momento ele se tornou um alvo para meus arqueiros no alto da muralha, e o sinal estava dado.

Apenas três flechas o atingiram. Ele estava perto demais da muralha, e aquele tiro tinha um ângulo muito difícil. Era necessário ficar em pé em cima do muro e mirar quase para seus pés para acertar. Só os mais experientes e corajosos sequer tentariam.

Olhei pra cima curioso e identifiquei os arqueiros que haviam atingido o chefe da gangue. Eu esperava apenas duas flechas nele, e não me surpreendi ao ver Milena e Jorth em pé na muralha com arcos nas mãos. Ao lado deles, essa sim a surpresa, estava o rapaz que me acordou. O que tinha os joelhos tremendo.

Os outros arqueiros haviam feito uma peneira com o homem que eu havia deixado para trás enquanto tentava alcançar seu facão. Seu corpo como um porco-espinho e sua arma em uma posição estranha perto de seu braço.

Me voltei para o campo de batalha e fui até as motos.
Nos compartimentos nos carrinhos das três motos eu encontrei uma coleção bizarra de itens estranhos de metal com utilidade duvidosa, a maioria provavelmente para machucar pessoas e preparar as drogas que eles usavam.
Também encontrei vários pedaços estranhos de carne que talvez seja humana e coisas que não gostaria de narrar.

No fim, a única coisa útil que encontrei foi exatamente o que procurava: cordas.

Quando os portões se abriram, Jorth foi o primeiro a sair e correr até onde eu estava.
- O que você está fazen- Aaaah, sim. – Ele logo respondeu a própria pergunta. – Vai jogar as motos penhasco abaixo com eles amarrados nelas.
- Bom, você pode me processar por poluir o rio lá abaixo do penhasco se quiser. – respondi, me divertindo.
- Eles eram caras horríveis mesmo não é? – Ele constatou ao revistar os compartimentos que eu já havia revistado.
- Eram a escória. O pior tipo de gente que existe, e talvez a maioria do que existe.
Ele se calou com um semblante sério.
- Você pode terminar aqui pra mim? – falei de repente. – depois peça pra uns sentinelas levarem essas porcarias até o penhasco. Talvez seja bom eles encararem um pouco da realidade fora das muralhas.
Não esperei resposta pra me dirigir para dentro da cidadela.

Fui surpreendido por um abraço repentino no instante em que atravessei o portão, quase achando que tinha caído em uma armadilha.
Um beijo nos lábios e um cheiro maravilhoso fizeram-se entender e eu relaxei no abraço.
- Isso foi perigoso demais! Eram nove! – A voz de Milena falava baixo da boca colada no meu pescoço.
- Eles lutavam como crianças e isso era obvio. Além do mais, eu precisava de me exercitar um pouco, to ficando destreinad- Ei, quer parar com esses tapinhas?
- Pe-ri-go-so! - ela disse cada sílaba separada por um tapinha no braço.
Já sorrindo, eu entrei em uma espécie de transe ao encarar o rosto maravilhoso dela. A luz que agora entrava diretamente do portão aberto atrás de mim reluzia nos olhos verdes dela, e evidenciava sua cor. Era um verde claro e forte, que não podia ser ignorado seja qual fosse o momento em que seu olhar passasse pelo rosto dela. Era pra onde eu olhava quando queria simplesmente parar de pensar. Encarava aqueles olhos por horas e o tempo que se passava nunca era perdido.

- Senhor? – uma voz me acordou de repente.
- Ah, você. Sempre me acordando – falei amistosamente. A voz dele não tremia agora.

Ele me encarava com uma expressão de quem sentia orgulho demais de si mesmo pra sequer reparar no que eu estava dizendo. Eu podia ter dito “Oi, vou te matar neste instante só por que eu to entediado, ok?” e ele continuaria com a mesma expressão besta.

- Obrigado pela chance, senhor. Agora eu entendi o meu trabalho, e não vou ter mais medo. – Ele proferiu num tom sério de quem tinha ensaiado discurso.
Eu sorri largamente. Com um certo incômodo, larguei o abraço de Milena para colocar as mãos nos ombros do rapaz. Ele merecia.
- Todos têm seu teste pessoal, rapaz. Que confere se você está realmente preparado para a vida que escolheu. E me parece que você passou no seu. Qual é o teu nome, rapaz?
- É Ulric, senhor.
- Pois então Ulric. Sentinela Ulric. Bem-vindo à muralha.

quinta-feira, setembro 30, 2010

Muralha - Cap. I


- Senhor! Senhor! – Foram as primeiras palavras que ouvi antes de terminar de acordar naquela madrugada fria.
- Diga homem! – bradei, sem humor algum. – Pára de gritar no meu ouvido, maldito!

O rapaz devia ter apenas uns dezessete anos de idade. A voz dele ainda falhava, chegava a ser um tanto ridículo. O coitado realmente nunca devia ter visto nada como aquilo em toda a sua pequena vida. Esse tipo de confusão só era vista pelos protetores da cidade, enquanto os habitantes normais se limitavam a ficar sabendo as notícias.

Não que ter esse tipo de visita ao nosso forte fosse incomum. Nossas muralhas com iluminação (rara neste mundo atualmente) espalhada por toda sua extensão e a mais de 20 metros de altura chamava atenção de grupos de viajantes com pouco rumo (o que era bem mais comum do que energia elétrica), gangues e/ou mercadores. Gangues e mercadores eu particularmente considerava a mesma porcaria: todos tentavam te roubar de uma forma ou de outra.

Voltando ao garoto, ele tremia tanto quanto sua voz adolescente enquanto falava:
- Senhor, aqueles homens estão com pressa e parecem perigosos! Por favor, senhor!
- Meu rapaz, – eu comecei, calmamente dessa vez. Talvez se alguém nessa maldita sala estivesse calmo o moleque conseguisse voltar a ter culhões – você está com frio? – esperei sua negativa com a cabeça antes de continuar – então pelo amor dos deuses, faça suas pernas pararem de fazer barulho enquanto tremem, pelo menos.

Ele me olhou com uma expressão engraçada que lembrava meu cachorro antigo, o Jack.
Mas o Jack teria cuspido naqueles mequetrefes além da muralha se pudesse cuspir e se não tivesse morrido há anos.

- Agora sim, moleque. Me diz quantos são lá embaixo? – continuei, quase rindo à lembrança do velho Jack.
- N-Não contei, senhor.
- Então pra que aquelas porras de aulas todas que você teve durante a sua vida, garoto?! – me fiz de irritado – Devia ter ido pra maldita aula de crochê com aquela sua irmã! Haha! – Ok, não agüentei não rir dessa vez.

Levantei da minha cama sem pressa. Afinal, era uma das poucas camas de colchões com algum conforto hoje em dia. Privilégios de ser “general” de uma das cidadelas que ainda persistem na sobrevivência humana.

General? Sim. Mas militar não. O título, nesses tempos depois de o mundo ter “seguido adiante” (depois do fim da maioria da população humana deste planeta) não é mais de cunho somente militar.
O fato é que as primeiras cidadelas eram militares, sim. Fortes que cercavam grandes cidades e eram controlados por homens treinados no combate militar e estratégia avançada. Eram generais de verdade.
Com o tempo as pequenas cidades também formaram suas cidadelas, suas fortalezas, como puderam. O título dado aos que comandavam as ações de defesa na fortaleza acabou sendo general também, mesmo nessas cidades pequenas com pouca instrução militar.

É claro que as grandes cidades foram as primeiras a serem atacadas. Alvos imensos e óbvios, com suas grandes luzes, seu cheiro de comida abundante e o resto de diversão que ainda se podia ter neste mundo devastado. A busca dos henki pela energia humana levou seus maiores clãs a atacarem as grandes cidades logo que eles apareceram neste mundo, e sabe-se lá de onde vieram (Não que isso importe alguma coisa agora que não existe mais nada a ser feito. Mas isso é uma historia pra depois). Logo, essas grandes cidades foram desaparecendo do mapa, restando apenas a cidade-forte que foi construída depois do início da guerra. Da guerra contra os henkis, estou falando, e não da guerra entre os humanos. Nossa, como estou me alongando nessa explicação.

Resumidamente, o título de general que era originalmente militar, foi “vulgarizado” e espalhado a todo chefe de cidadela que existe, e a maioria dos que existe atualmente de militar só tem o armamento (também bastante raro. A maioria da pólvora que se consegue é utilizada em uma forma rudimentar de produção de energia, em combustão e coisas que não saberia explicar perfeitamente). A organização militar já não existe mais há algum tempo. Deuses sabem, organização quase nenhuma existe.

Mas voltando ao que interessa, eu levantei de minha cama confortável. Com calma, vesti o casaco grande, que ia quase até o chão, e as luvas de couro. Já estava com a calça grossa e as botas, pois sempre dormia preparado para me levantar rapidamente. Raras vezes precisava realmente fazer isso, mas é sempre bom estar preparado. Às costas, vinha a grande e afiada espada. Era fina, como aquela dos antigos japoneses, e mais longa que o braço de um nadador.

O garoto pareceu se acalmar ao som de minha espada na bainha nas minhas costas. Coloquei as mãos nos ombros dele:
- Se quiser ter uma espada dessas um dia, filho, vai ter que fazer essas varetas pararem de tremer, ok? Pernas são a base de um bom lutador. Hahaha!
Todos na sala riram nervosamente e o clima no quarto pareceu ficar mais leve de repente. Só então eu parei pra olhar o resto das pessoas no recinto, além do garoto desesperado. Eram mais quatro dos sentinelas das muralhas, responsáveis por observar quem chegava perto da cidadela ao longe.

O caminho até a muralha frontal era longo, então demoramos uns quinze minutos de caminhada. As botas fazendo barulho no chão metálico, atraindo alguns olhares que logo paravam no meu rosto e provocavam um pequeno aceno de mão ou cabeça.
Eram trabalhadores das mais diversas áreas ali, trabalhando durante a madrugada. Se esforçando para manter a cidade funcionando bem para o bem de todos. A pequena porção da humanidade que eu realmente considero “humanidade”. Essas pessoas confiam em mim, na minha liderança, para proteger essa cidade e me respeitam por quem sou. Não fazem idéia do quanto eu as respeito e fico honrado em ajudar a protegê-las. Não fossem essas pessoas, eu não teria crédito algum no ser humano e talvez estivesse aí pelo mundo invadindo pequenos covis de henkis ou lutando contra gangues de humanos desgraçados, tentando fazer minha vida ter algum significado. Provavelmente estaria morto muito antes de chegar aos trinta sem ter encontrado sequer um coração bom nesse mundo.

Ao chegar na parte frontal da muralha, em frente à sala que dá visão exatamente acima dos portões, encontrei Lisandra. Uma guerreira exemplar, devo dizer. Era morena de sol e alta, de rosto sério a despeito do formato delicado. Diferente dos olhos verdes, o cabelo negro e até a cintura era totalmente diferente do de sua irmã mais nova, Milena, que tinha os cabelos lisos até os ombros. Eram cabelos avermelhados que combinavam com a expressão muito mais convidativa e divertida que ela tinha, totalmente diferente da irmã. Tinham apenas dois anos de diferença entre as duas, mas pareciam décadas, dada a diferença de humor delas.
Milena também não era tão alta quanto a irmã, o que particularmente me agradava. Aliás, ela vinha me agradando há algum tempo já, se é que me entende. Sua companhia sempre fora bem vinda. Ela sempre trazia luz para o ambiente quando me visitava. Mas isso também é assunto pra outra história.

As duas me cumprimentaram rapidamente e já começaram a fazer o relatório da situação. A voz forte de Lisandra foi a primeira a ser ouvida:
- São humanos, senhor, e parecem estar armados. Bateram nos portões por vários minutos e ignoraram os avisos dos sentinelas. Simplesmente não entendem que não podemos deixá-los entrar, ainda mais com esse comportamento marginal.
Milena emendou:
- Acham que devemos provisões e mulheres (frisou essa parte com certa revolta) a eles, senhor (um tom quase imperceptível de diversão ao me chamar assim). Dizem que vieram de longe atrás de diversão e que gastaram muito no caminho. E que vão usar bombas se não puderem entrar logo.

Bombas? Eles sabem que não vão passar das muralhas com uma bomba qualquer. Eles usaram essa ameaça comum pra assustar o general e a população da cidade.
Isso é bem comum de acontecer: gangue de uma cidade de tamanho médio vai até cidade pequena com alguns armamentos e ameaça as pessoas pra entrar. O general teme que, se eles não tiverem o que querem, vão voltar com reforço de sua cidade maior e com mais armamentos, forçando a entrada. Se eles tem bombas, devem poder conseguir coisa perigosa de onde vieram. Dessa forma, os patifes entram nas cidadezinhas, aproveitam tudo o que querem e vão embora. Às vezes essas pragas trazem de suas drogas e viciam habitantes locais. Eventualmente ainda voltam pra cidade pra vender mais drogas ou levam gente com eles, geralmente mulheres de algum pai ou marido frouxo.
Mas essa não vai funcionar aqui.

Milena pareceu ler meu pensamento:
- É o velho truque dessas gangues de cidades maiores não é?
- Sim – falei, com o semblante sério - mas não se preocupem. Não vai acontecer. Quantos eles são? Todos eles têm todos os membros? – foi inevitável meu tom de escárnio nessa parte.
Milena sorriu e Lisandra respondeu:
- Contei nove, senhor. Mas pode ter algum escondido naquela parte de carona ao lado da motocicleta.
- Moto é?
- São três motocicletas, senhor. O senhor está pensando em descer lá? – esse foi um dos poucos momentos em que as expressões das duas irmãs foram realmente parecidas: preocupação.
- É a forma mais lógica de acabar com essa palhaçada – falei de pronto.
- Mas eles estão armados... – Milena entoou protetoramente, sendo completada por sua irmã:
- E sabe-se lá que tipo de veneno eles podem estar usando em armas brancas também. Todos eles carregam alguma.
- Acalmem-se, moças. Deixem eu dar uma olhada.- e completei, me dirigindo aos sentinelas – Rapazes, quero que chamem dois sentinelas de cada flanco da muralha pra se juntar a vocês cinco. E peguem seus arcos. Ao meu sinal, quero que vocês mirem muito bem nesses bastardos.
- M-Mas senhor, – começou o pequeno rapaz que tremia ao me acordar – o senhor sabe que eles usam “coisas” de metal pra se defender das flechas... isso não vai espantá-los daqui.
- Minha intenção não é essa, garoto. Vocês só vão atirar se algum deles tentar fugir.
- Fugir? – mais uma vez a voz dele falhou e deu um tom bastante débil para a pergunta.
- Sim, fugir. De mim.
Não pude deixar de sorrir à injeção de confiança que surgiu no garoto. Ele murmurou um “ok, ok senhor” enquanto se afastava para seguir minhas ordens.
Me virei para as mulheres:
- Então, moças. Vamos ver a cara desses energúmenos.
Milena ensaiou um sorriso preocupado enquanto a irmã abria a porta da grande sala de comando para que eu entrasse.

Lá dentro, encontrei Jorth. Assim como eu, ele não era um homem muito alto. Mas tinha um porte maior, era mais largo e seu rosto de ângulos retos transmitia força. Os olhos francos me encararam seriamente como costumava fazer desde que éramos pequenos, com aquela expressão de “temos problemas”.
Ele me cumprimentou do modo aragorniano (aquele aperto de mão que não segura nas mãos, e sim nos punhos) enquanto falava:
- Daqui eu ouvi a conversa de vocês lá fora. Você realmente vai descer lá? Eles me parecem bastante violentos.
- É justamente a minha vantagem. Deixe-me confirmar. – me dirigi até a abertura da sala e olhei lá pra baixo. Era uma pequena janela com uma espécie de telescópio apontado para o grande portão abaixo.

Os nove sujeitos pareciam bastante irritados já. Todos eles usavam jaquetas de couro marrom e tinham alguma figura nas costas. Dois deles tinham moicanos punk e metal por todo o corpo, piercings. O resto tinha cabelos grandes e imundos. Todos com tatuagens que tentavam, inutilmente, disfarçar marcas de doenças pela pele.
As três motocicletas estavam desligadas e todas tinham compartimentos grandes no carrinho ao lado, provavelmente carregando drogas e pilhagem. Não, não havia ninguém escondido naqueles compartimentos.

Todos tinham correntes nas roupas, mas provavelmente não usavam como armas. Suas armas eram facões, grandes serras e, um deles, o maior, carregava um machado. Um deles, que parecia ser o líder, brandia uma arma enferrujada e antiga. Um pequeno revolver que provavelmente tinha umas três balas, se tivesse pólvora.

A voz rouca de Jorth veio de perto:
- Olha bem, outros três têm armas – pelo jeito eu estava pensando alto enquanto observava, já que ele sabia que eu olhava o líder e sua arma – mas estão no coldre, perto da perna esquerda, ó. E lá, na moto mais atrás, o carrinho ta um pouco aberto. Aquilo me parece uma bazuca. Lembra delas?
Confirmei visualmente antes de responder:
- É. Realmente. Nossa, uma basuca! Não vejo uma dessas desde a aula de armamentos do teu pai, lembra?
- Vamos nos ater ao problema, meninos? – Bradou Lisandra, mais ao fundo da sala.
- Ok. – me desculpei, tentando recompor minha voz a um tom sério. – Pois bem. Eis a situação: Esses babacas não oferecem perigo nenhum para a cidade. Dá uma olhada aqui – apontei a ferramenta, olhando para Lisandra, quer agora tinha uma imensa interrogação no lugar do rosto. – Eles carregam armas demais, e veja só, pólvora é bastante raro e caro hoje em dia. Aquelas motos velhas utilizam uma forma de combustível a partir de pólvora também, não muito diferente dos carrinhos que usamos pra transportar alguns produtos pesados aqui na cidade. Logo, acho difícil que as armas daqueles três ali funcionem. Se funcionassem, eles estariam sacudindo elas como se estivessem em alguma festa de santo antigo. Eles devem usar a maior parte da pólvora nas motos.

“Outra coisa: eles estão agressivos demais. Os dois cabeludos de trás, que são os menos bagunceiros, não param de olhar para os lados e bater os pés. Eu calculo que deve ter uns cinco dias que esses dois não tomam seus comprimidos, e os outros provavelmente menos tempo, já que estão mais agressivos. De qualquer forma, eles não estão pensando 100% direito, e isso pra mim é uma grande vantagem. Nossa cidade é cercada por montanhas então obviamente têm mineração e metais. Eles provavelmente vieram aqui atrás da drogas que os caras da mineração criaram há uns anos... deve ser a porcaria barata que eles usam. E de quebra, devem estar querendo um bocado de pólvora pras motos e todo o caos que puderem fazer aqui dentro.”

Ninguém piscava quando eu acabei de falar.
Levantei a sobrancelha esperando uma reação de alguém, até que Milena falou:
- Então você vai descer lá com os rapazes e dar uma surra neles? Só isso?
Jorth tossiu uma risada. Alguma lembrança antiga provavelmente.
Ignorei a diversão dele e respondi:
- Não, eu vou sozinho. Ah, não faz essa cara. Veja bem, eu não tenho certeza de que esses idiotas não são realmente de uma gangue grande de alguma cidade por aí, e se podem voltar a incomodar a gente se fugirem. Se eles me virem com um monte de gente, vão se sentir acuados e fugir. Não posso correr esse risco. Uma gangue grande o suficiente não vai reparar o sumiço de um grupo de aleatórios como esses, mas vai se sentir ofendida se eles voltarem lá e disserem que foram amedrontados por nós. Na verdade, seria a diversão do ano para eles.
- Bom - Jorth continuou o raciocínio – então você acha que vai descer sozinho lá e dar cabo de todos eles? Assim eles não voltam pra lugar nenhum e não incomodam mais ninguém.
- Eu deixaria você ir comigo, você bem sabe, mas não quero arriscar a vida do futuro pai do moleque que está na barriga da sua esposa em uma luta dessas. – o argumento o fez abaixar a cabeça. Eu me virei para Lisandra, que estava pronta para argumentar – e eu ir sozinho é uma vantagem tática. O líder nem vai achar que precisa usar aquela arma contra mim, e eles vão lutar de forma desleixada e desorganizada por acharem que tem vantagem. E por serem imbecis.

Ela pareceu aceitar bem meu argumento.
- Então eu vou descer e acabar logo com isso. Vocês ficam daqui. Jorth prepare os arqueiros, por favor – finalizei.

terça-feira, setembro 21, 2010

quarta-feira, setembro 15, 2010

Perguntaram a John Lennon:


- Por que você não pode ficar sozinho, sem a Yoko?


- Eu posso, mas não quero. Não existe razão no mundo porque eu devesse ficar sem ela. Não existe nada mais importante do que o nosso relacionamento, nada. E nós curtimos estar juntos o tempo todo. Nós dois poderíamos sobreviver separados, mas pra quê? Eu não vou sacrificar o amor, o verdadeiro amor, por nenhuma piranha, nenhum amigo e nenhum negócio, porque no fim você acaba ficando sozinho à noite. Nenhum de nós quer isto, e não adianta encher a cama de transa, isso não funciona. Eu não quero ser um libertino. É como eu digo na música, eu já passei por tudo isso, e nada funciona melhor do que ter alguém que você ame te abraçando.



Catado daqui: http://agreedoce.tumblr.com/

terça-feira, setembro 14, 2010

Sim / Não. Pode / Não Pode. X / !X


A dor de cabeça não era nenhuma novidade, e ela resolveu levantar do computador por um tempo. Pegou a garrafa d’água na mesa às suas costas e começou a dar grandes goles enquanto andava até a janela.

A garota vestia um short folgado de um rosa desbotado e uma blusa velha amarela, com alças finas que não permaneciam nos ombros de jeito nenhum.

Um vento fresco vinha ao seu encontro, promovendo um arrepio leve. De seu quarto, no 3º andar, podia ver a rua vazia e quieta que só a madrugada proporcionava. O cheiro leve de asfalto molhado e grama úmida trazia uma sensação boa. Gostava da noite.

Uma pontada aguda na têmpora o fez se levantar da poltrona do computador. Imediatamente ele inclinou a cabeça em ângulos estranhos, estalando o pescoço com um som alto. Fez algumas flexões no chão antes de ir até a janela grande na pequena área de serviço. Observou o céu nublado por um tempo.

O ar úmido anunciava chuva, e ele se concentrou em ouvir as gotas que começariam a cair em segundos. O silêncio da madrugada o encorajava a continuar ouvindo o nada indefinidamente, e ele permaneceu ali só ouvindo e pensando em nada muito específico. Divagando em pensamentos sem peso, sem preocupação.

O ombro da garota foi quem a avisou que começara a chover. Uma grande gota gelada tocou sua pele onde deveria haver uma alça de blusa e a tirou de seu transe. Estava totalmente perdida em pensamentos sem importância.

O frio foi repentino.

Um trovão veio junto com as primeiras gotas da chuva e fez o rapaz piscar. O frio ainda não o incomodava, mesmo ele estando em seu habitual traje de dormir, que consistia basicamente em uma calça preta fina e nada mais.

O vento gelado soprou novamente e dessa vez o fez encolher os braços em volta de si mesmo.

Ela quis ser abraçada de repente. Seu semblante tranqüilo se modificou em uma expressão de saudade de alguém que nunca teve. As sobrancelhas se juntaram devagar, e os lábios rosados formaram um bico pouco perceptível.

O maxilar se enrijeceu.

E a expressão dele ficou séria. Neste momento certamente o perguntariam o que diabos ele estava pensando e ele, como algumas vezes, simplesmente não tinha uma resposta de imediato. Apenas sentia falta de alguém que nunca teve.

O rapaz e a moça poderiam muito bem estar em prédios um de frente para o outro. Poderiam estar se encarando agora e sorrindo simpaticamente pela expressão de um ser o espelho da do outro. Poderiam conversar de longe por sinais e finalmente decidirem descer de seus apartamentos e conversarem na rua, e a conversa começaria com ambos gargalhando por “como a gente é bobo de ficar fazendo mímica ao invés de descer logo” antes mesmo de um saber o nome do outro.

Eles poderiam tranquilamente conversar até repararem que ficou incrivelmente tarde e eles têm que voltar pra casa, e ainda sentirem vontade de conversar quando chegarem lá.

Poderiam tornar costumeira a passada na janela entre qualquer atividade em casa, só pra ver se eles se vêem “por acaso”. Ou talvez de repente a tarefa de abrir o portão pra entrar no prédio tenha ficado trinta segundos mais demorada. Talvez mais demorada, se eles ficassem olhando pra trás, para o prédio em frente ao próprio.

Tudo isso é possível, mas não aconteceu.
Nenhum dos dois teve o abraço que queria. Nenhum deles foi protegido do frio.

Ele não tocou o ombro dela pra ajeitar a alça da blusa que caía pela quadragésima nona vez, após horas de conversa. Ela não comentou rindo que ele provavelmente pareceria menos mendigo de dia, enquanto tocava a barba por fazer dele e apontava sua camisa totalmente amarrotada.

Eles não ignoraram totalmente a chuva enquanto estavam juntos. Isso não aconteceu.

Os dois viveram suas vidas como puderam e nunca se encararam de suas janelas, através da chuva. Talvez tenham se visto em alguma palestra da faculdade, ou alguma festa.
Podem ter se conhecido em alguma turma de uma matéria esquisita de humanas.

Nunca tiveram mais do que isso. Sempre foram mais do que isso.

As coisas podem acontecer, podem se desenvolver, desabrochar e se tornarem acontecimentos e sentimentos sólidos.

E pode não acontecer nada, não importando o quanto se quer ou se pode. Pelo simples fato de não acontecer.

O mais perto que esses dois chegaram de se relacionar de qualquer forma, pode ter sido esse olhar para a chuva. Ou eles podem estar juntos neste momento, vivendo as próximas chuvas juntos.

No fim, é só uma história de vida ou de blog. E pode não ser a sua nem a minha.

Ou pode ser a nossa.

sexta-feira, setembro 10, 2010

Os cascos de seu cavalo negro escorregavam no chão enlameado e irregular enquanto ele cavalgava veloz.

quinta-feira, setembro 02, 2010

Dusk and dust

O aperto estranho no peito já não podia mais ser ignorado. Ele se distraía empenhando-se o máximo no uso de toda a sua coordenação motora e reflexo, mas nem isso tirava o ‘pensar’ da sua cabeça. E o aperto no peito não se deixava ser ignorado.

Já chegava a ser uma espécie de dor física, o que ele sentia. Não era só um sentimento ruim mais. Era verdadeiramente a sensação de que um par de mãos invisíveis apertava por cima de seu coração, como que para fazer uma massagem cardíaca às avessas: com o objetivo de parar seu coração, ao invés de fazê-lo voltar a bater. A pressão na caixa torácica dificultava um pouco a respiração e até pensar com clareza estava ficando difícil (o que não o impedia de pensar, de qualquer forma).

A luta em si, para não ficar mal, estava começando a o deixar mal. A tentativa de resistir ao que não se podia resolver por si mesmo estava se tornando parte dos problemas. Além de tudo, o próprio fato de não poder fazer nada já era considerado por ele como uma derrota constante.

Cada dia era uma luta interna de resistência a tudo. Tudo havia se tornado um combate mental em um loop infinito e no momento só existia o cansaço. Extremo.

Tudo isso estava cansando. Ele estava muito, muito, muito cansado.

terça-feira, agosto 24, 2010

Magia: Nada nessa mão, nada nessa- ops.

Não houve tempo sequer de se ouvir o zunido da pequena haste pontiaguda cortando o ar. Só sentiu o impacto diretamente no peito, atravessando armadura de couro batido e roupa no caminho.

A flechada o deixou atordoado imediatamente, encarando a flecha parcialmente enterrada em seu tórax. A dor demorou a vir. O cheiro de sangue em madeira nova invadiu suas narinas enquanto ele ainda dava um passo pra trás, tentando manter o equilíbrio e o raciocínio.

Estava bebendo água no rio, de costas para um caminho que levava à floresta densa, mas parcialmente protegido por uma concentração de arbustos atrás de si. Lembrou de ter levantado, e virado de frente para o caminho, costas para o rio. Deu dois passos ao encarar algo que parecia ser o brilho de dois olhos e uma grande energia ruim entre a mata escura. Lembrou de sentir o desejo de morte vindo, e a flecha chegou ao seu destino.

Diretamente à frente, foi o que pensou. Parou para ouvir. Os passos leves do atirador não podiam ser ouvidos a essa distância, o que significava que ele era bom, pois atirara longe. O arqueiro teve que calcular a curva pelo vento, evitar o máximo de folhas e galhos das árvores no caminho. Além disso, deveria ser um homem bastante paciente, pois esperara até que o alvo estivesse em posição perfeita para o tiro, coisa que este alvo em especial não havia oferecido nos últimos dias.

Ferido, ele gritou de dor e deixou as pernas perderem seu equilíbrio, caindo para trás, fazendo uma bagunça entre os arbustos e as poças d’água próximas.

O arqueiro estava escondido em uma parte mais densa e escura da floresta, aguardando a chance certa. Mesmo na luz, seu capuz grande tampava todo o rosto, tornando impossível encarar o olhar fixo e implacável que se estampava naquele rosto no momento da caça.

Sobre um dos joelhos, com total equilíbrio e controle de cada músculo de seu corpo, viu a oportunidade (a primeira em dias) e atirou. Mirou um pouco para cima, calculando obstáculos e vento no caminho, e a flecha voou do arco absurdamente envergado.

Ouviu com alegria o grito agonizante que indicava o tiro certeiro. Empertigou-se imediatamente, como que fazendo uma pose vitoriosa para um observador inexistente. Sentia muito orgulho de si. Havia deixado o alvo confortável, achando que tudo estava bem. Por dias havia-o seguido e sabia bem que mesmo os mais espertos e experientes se acostumavam à sensação de estarem sendo vigiados se submetidos a ela durante muito tempo. E aí estava o resultado: mais um serviço bem feito. Bom, quase feito. Ainda eufórico, começou a andar, no intuito de terminar o serviço.

Carregava uma aljava com algumas flechas colada à perna direita, amarrada ali com tiras de couro, equipamento especialmente feito pra ele. Na outra perna, um pequeno bolso, também amarrado por tiras, onde ele deixava pequenas sacolas de couro com venenos e óleo para passar em flechas e atirá-las com fogo. Pôs a mão protetoramente sobre esse bolso e começou a correr para o alvo.

Correu em um caminho de parábola, não encarando diretamente o corpo do inimigo caído. Sempre fora cuidadoso assim mesmo com o alvo abatido. Chegar pelo flanco salvara sua vida várias vezes. Parou a poucos metros do alvo, separado do corpo por um arbusto denso, lembrou da recomendação de certo rei que o havia contratado: “Cuidado, magos são criaturas traiçoeiras. Usam tudo ao redor!”. Com o arco já pendurado em seu ombro, ele sacou sua adaga curta e curva, excelente para ataques rápidos ou para arremessar. Era excelente com essa arma. O mago estava muito debilitado e devia estar sem muita força vital, o que limitaria muito o poder de qualquer espécie de feitiço que usasse. Pensando nisso, se sentiu mais confiante e avançou para dar a volta no arbusto e transformar o corpo caído em um defunto.

No milésimo de segundo em que colocou os olhos no corpo cuja flecha estava atravessada no tórax, a adrenalina do campo de batalha tomou conta dos corpos de ambos, despertando os instintos guerreiros de cada um e levando-os a, nesse tempo mínimo, conseguirem total conhecimento do ambiente onde batalhariam.

À frente do arqueiro, um mato baixo e úmido. Três passos a frente estava o corpo do mago, com seu braço direito caído pra dentro dos arbustos e a cabeça encarando o topo das árvores altas, olhar vazio vidrado nos pequenos pontos por onde as copas das árvores permitiam a passagem da luz. Ele estava deitado e sua respiração, subindo e descendo no peito, era muito lenta, quase imperceptível.

O arbusto denso se estendia até o seu lado direito também, e assim ele observava sua caça caída com a cabeça diretamente à sua frente.

E então uma faísca na mão esquerda do mago, enquanto ele estalava os dedos. Não, a faísca estava nele, em sua perna esquerda! Pior, no bolso onde estava seu equipamento inflamável!

Ele xingou alto e atirou a adaga na mão esquerda do mago, a que produzia o fogo, enquanto pulava para trás, para o rio. Droga! Maldito! Acabara de queimar seus tão raros óleos e o fogo estava se espalhando pelo couro de sua armadura leve, já tendo atingido seu cinto de adagas. Ausente ao grito de dor do arcano atingido na mão, o arqueiro se desfez rapidamente do peitoral de couro e mergulhou no rio raso, levantando rapidamente e batendo com as mãos na perna esquerda ainda quente.

Encharcado, levantou a cabeça já sem capuz para encarar o mago de forma desafiadora.

- Respeito você pelo último esforço, arcano. Mas você está fraco e agora sua mão esquerda já não serve pra nada. É o fim, você perdeu.

Sua resposta foi uma tosse que lembrava de longe uma mínima risada.

Deu um passo para frente. Mais dois passos e sairia do rio, mais três passos e terminaria com aquela caça e seria um homem rico.

- Seus passos fazem um tremendo barulho quando dentro de um rio, mercenário – Disse a voz incrivelmente jovem do mago, com tom de quem se divertia.

E então não houve tempo para mais nada. Uma bola de luz se moveu rápido de dentro dos arbustos, acompanhando a mão direita do mago, e de lá veio um clarão. Ouviu um trovão ensurdecedor enquanto a luz atirava-se como uma lança de eletricidade diretamente para seu corpo encharcado. A luz foi sua última visão antes que o mundo se tornasse escuro.

O mago nem sequer precisou olhar para atingir seu alvo, muito menos para conferir se este estava vivo ainda, pois obviamente não estaria. Estava completamente molhado, e pelo som que fez ao andar, o rio devia estar meio palmo abaixo de seu joelho. Só precisou atirar o raio que havia conjurado sob a distração do fogo e a cobertura dos arbustos, na direção que ouvia. A água em volta fazendo o resto do serviço.

Por alguns segundos ouvia o corpo do assassino tremendo freneticamente antes de finalmente bater na água rasa. Suas últimas palavras haviam sido o som de seu maxilar batendo com força enquanto a corrente elétrica atravessava o corpo.

Cuspiu sangue e finalmente se entregou à dor da flecha enterrada no peito e da mão atravessada pela adaga, provavelmente envenenada. Cairia, mas seu inimigo iria junto com ele para o fim. Calculou que o fim para si não levaria mais do que alguns instantes.

Não repensou sua vida. Não se arrependeu de nada do que fez. Não houve túnel nem luz enquanto cerrava os olhos. Enquanto fechava seus olhos para este mundo, ouviu o barulho de cascos batendo com força e ritmo veloz, tremendo o chão sob si mesmo. Seria o cavaleiro da morte de quem ouvira falar?

Tudo escureceu e não houve mais como pensar ou saber nada.

Os cascos pararam ao seu lado. E não houve mais nada.

sexta-feira, agosto 20, 2010

A Arte de Continuar

Os cascos de seu cavalo negro escorregavam no chão enlameado e irregular enquanto ele cavalgava veloz. O vento forte machucava os olhos e desprendia as lágrimas. Precisava chegar rápido, não podia se atrasar nem um minuto que fosse. Não poderia perder essa chance, talvez a única chance.

Subiu a colina e observou o campo à sua frente. Kilometros de campo aberto e de mato alto e uma descida pouco íngreme o separava de seu destino. Ao longe, podia ver a chuva forte que caia. Sempre a chuva.

Podia sentir o cheiro da chuva enquanto continuava a cavalgada desenfreada. A grama aos joelhos de sua montaria passava em um borrão verde e a terra espirrava para trás do cavalo. O alazão não se assustava nem com os trovões mais fortes, bem como seu cavaleiro. Os clarões eram encarados como dádivas, davam força para continuar a empreitada e completar a missão.

As muitas horas, talvez dias, de corrida contra tempo, clima e cansaço finalmente terminavam. Já podia encarar o imenso portão de madeira que dava passagem através da muralha. Na parte baixa, na altura da cabeça de um homem, havia um grande escudo marcado com a grande cabeça de um leão, como que observando e avaliando a coragem daqueles que se aproximavam.

Foi um esforço para parar o grande cavalo em frente ao portão. Ele parecia querer continuar para sempre.

O homem, com a roupa molhada e suja, mas um ar vitorioso, encarou o portão. Desmontou, apertou mais a fivela do cinto que carregava a espada e andou até o portão. Bateu três vezes no escudo.

A espera pareceu de meses. A chuva se transformou em tempestade e o frio se intensificou. A noite caiu e o dia se fez e ele continuamente tentou de várias formas abrir o portão, até que finalmente uma pequena fresta se abriu com um barulho enorme e palavras pesadas foram ditas.

De cabeça baixa, o cavaleiro voltou à sua montaria e cavalgou até que sua cabeça pudesse se levantar.

Os cascos de seu cavalo negro escorregavam no chão enlameado e irregular enquanto ele cavalgava veloz.

terça-feira, agosto 10, 2010

Trovão que não se ouve não existe

O barulho alto da chuva o deixou louco. Seu tilintar ritmado no teto da varanda e o som da rua sem asfalto sendo atingida pelas gotas eram a sinfonia perfeita para o momento.

Todos aqueles pensamentos guardados secretamente, alguns até de si mesmo, pareceram vir à tona. Foi como se passassem do gasoso para o líquido de repente, ocupando menos volume e pesando mais.. querendo escorrer pela cabeça. Querendo se juntar à correnteza criada pela chuva.

Estava pesado, muito pesado. Precisava falar ou colocar tudo pra fora de alguma forma.

Colocou a si mesmo pra fora.

Saiu na chuva grossa sem medo. Os pingos grossos já o atingiam antes que terminasse de abrir o primeiro portão, causando um pequeno estranhamento de temperatura em seu corpo. Ao atravessar o portão que largou escancarado, ele se livrou da sua blusa. Abraçou a chuva de peito aberto, mergulhou no som dos trovões.

Ria de seu comportamento enquanto ia ao segundo portão, que dava saída pra rua. Era sempre assim, não importando a época. Mergulhava quando queria algo. Quando tinha esse algo, mergulhava mais ainda, de cabeça, aproveitando cada instante. A cabeça, que tanto usava pra pensar demasiadamente sobre tudo, abria o espaço e, ponta de lança, cortava o caminho a se seguir. O coração dizia a direção e o espírito agüentava todo o dano que vinha como faca afiada em sua direção, dilacerando até orgulho em seu caminho.

Mas o mergulho sempre continuou. Apesar das dores, cortes e cicatrizes (mesmo que nem sempre obvias ou mesmo visíveis), da pressão aumentando quanto mais fundo ele fosse, ele continuava. Um mar de acontecimentos bons e ruins estava a sua volta enquanto durasse o mergulho, mas ele fora o mestre do otimismo e da coragem. Continuava, sempre, em frente, sempre em frente, sempre em frente, como o trem que se prende aos trilhos do caminho escolhido (até mesmo repetindo analogias).

A chuva, depois de encharcar rapidamente os cabelos castanhos, escorria do rosto aos ombros, parte caindo diretamente ao chão, parte escorrendo pelos braços e tórax. Era uma sensação excepcional. A cascata gelada descia pelo corpo provocando uma espécie de choque no caminho, provendo energia. Dando coragem e resistência por onde passava.

Parou de pensar e só se concentrou naquele momento singular, mesmo que já repetido algumas vezes.

O peso no peito passava, o nó na garganta se desfazia.

Os sentidos melhoravam. O olfato, geralmente deplorável, agora sentia um agradável perfume que incitava à busca de sua origem. O paladar estava deixando de sentir o gosto amargo de instantes atrás. A visão clareava e os olhos não se incomodavam com a chuva, de forma alguma. Um ímpeto vindo do instinto o fez se mover.

Postou-se a correr. Como se suas pernas fossem guiadas para o bom caminho, ele corria no ritmo de uma respiração rápida e compassada. Depois de meia hora correndo e tentando não escorregar na chuva, enfrentando lugares enlameados que exigiam força para se passar, o cansaço deveria ter chegado. Mas não chegou. Por muito tempo não houve cansaço, e por muito tempo ele não descansou.

Sempre fora assim. Ao primeiro sinal de que as coisas estavam bem, numa fagulha de felicidade, debilmente ele ia em frente, com tudo que tinha.

Não descansou até perceber que precisava. E quando percebeu, cansou. Sua energia foi a zero imediatamente. Nenhum espírito é tão forte assim, garoto. Vê se aprende. – era o que rodava em sua mente numa voz pouco mais grave que a própria.

Neste momento ele piscou e se viu parado exatamente do lado de fora do primeiro portão. Não havia corrido um centímetro, nem saído para o dilúvio da rua. A chuva forte começava a estremecer seu corpo.

Achou que estava ficando bem. Teve esperanças nessa chuva perfumada onde estava, pra onde fora atraído. Não era a sua primeira vez e não seria a ultima em um acontecimento desses, pensou. Listou mentalmente todas as coisas que tinha na cabeça, e se deu conta que não botara nada pra fora. E estava tudo exatamente do mesmo jeito.

A mesma falta de vontade. Ou seria de força?

Como que sentindo medo, seu espírito machucado tremia com força sob a chuva. E o garoto tentava decidir: voltar pra casa vazia, se enxugar e esperar a próxima chuva ou abrir o portão e enfrentar a tempestade lá fora?

Essa decisão tem alguma coisa a ver com seu estado atual?

Ele acordou cheio de perguntas a si mesmo e sentindo o vento frio vindo da janela. Apalpou ao seu lado a parte sempre vazia da cama, buscando ali algum conforto. Costume idiota. Vazio. Só isso. Idiota.

sexta-feira, maio 21, 2010

Several Ways to live Trying

Saindo do breu de um beco úmido, seus passos ecoando um som de borracha em lama, ele tira um objeto prateado do bolso e expõe à garoa. O som do isqueiro abrindo, libertando uma pequena chama ao vento forte, é como o toque de um pequeno sino em meio ao ritmo ditado pela goteira que incomoda a metros de distância.

Ele pára e encosta na parede ao fim do beco, observando calmamente a chama que não se apaga sob a garoa, perseverante.

Olhando sobre o ombro, para a escuridão de onde saiu, ele nota que a pequena chama ilumina fracamente um círculo envolta, rachando com destreza uma pequena parte da sombra que ficou para trás. Voltando ao fogo, lembra-se.

Um cavaleiro, veloz, cavalga sobre um campo verde com poucas árvores. Já foi espada e escudo.

Já defendeu amigos e também já falhou nisso. Já foi escudo para si mesmo, e lança também. Já atacou seu objetivo sem pensar, ignorando toda a dor causada pela peleja infinita e absurda. Lutou sem causa, sem orgulho. Pisou em cima de sua própria razão e por vezes cuspiu sangue em sua face no espelho, escondendo ali a cara machucada e infeliz que não admitia o erro. No coração, continuava sendo um cavaleiro.

Havia se desfeito de sua armadura há muito tempo. O peso que o defendia o tempo todo não era necessário. Agüentou, por tempos, dores que não eram suas. Foi bom com aqueles que buscavam nele algum conselho, amizade ou carinho. Também buscava os mesmos em pessoas e, intencionalmente ou não, foi bom na troca.

Mas seu espírito ia ficando cansado. As constantes batalhas, muitas que somente ele tomou conhecimento, muitas consigo mesmo, desgastaram sua vontade.

Ele pisca finalmente, olhos lacrimejando, e na visão turva se repete o momento em que abandonava sua espada. Quando escolheu trocar o bom combate pela artimanha. Por um tempo antes disso, já não era o mesmo. Já não tentava tanto ser melhor, evoluir. A bainha agora carregava uma adaga, polida pelas vontades e cravada com rubis que davam uma estranha sensação de liberdade, acompanhada por um sorriso que poderia um dia ser vil. Tinha o potencial.

Por um tempo, seguiu o caminho mais curto. Andou pelas sombras, fez coisas das qual não se orgulhava. Seu orgulho, inclusive, ficava escondido. Difícil de alcançar até pra ele mesmo. A visão, por vezes embaçada na luz, caía pro lado e não o reconhecia no espelho. Observava os próprios olhos com dificuldade e via sua silhueta, contornada por um ar inflamável. A cara de olheiras roxas e barba por fazer atirava cansaço e quase quebrava o vidro fino que prendia sua dignidade. Não gostava de algumas atitudes suas, mas continuou no caminho torto, apesar dos avisos que já chegavam aos seus ouvidos atentos.

O ar inflamável à sua volta começava a queimá-lo. Mas precisava seguir mais um pouco. Acostumado idiotamente a ir até o limite, ele continuou.

Personificou o contrário do que era.

Decepcionou, decapitou sua própria razão, e seguiu somente a vontade. Decepcionou, denegriu seu próprio manto de honra, já manchado e rasgado, antes ostentado pelo esforço.

Nada que encontrou no caminho oblíquo durou. Mas o que é que dura nessa vida?

Piscou novamente. A chuva, agora forte, o acordava dessa vez. A mínima chama do isqueiro prateado continuava acesa, de alguma forma mágica. Encarou-a com avidez. Esperava algum sinal, mas este já estava dado. Esteve jogado em sua face o tempo todo. Nunca havia saído dali, só ele havia escolhido ignorar.

Fechou o isqueiro com ímpeto, quase prendendo o próprio dedo. O som metálico ecoou por todo o beco e, apesar da chuva já forte, produziu o som de metal batendo em metal, como lâminas se combatendo. Desencostou da parede onde estava. Tinha que se mover. Sacudiu um pouco da água acumulada em seu casaco e colocou o capuz.

Soprou um pouco de vapor ao começar a caminhar. Agora faria um caminho novo. Iria inventar. O improviso lhe cairia bem enquanto recuperava a dignidade e honra que estavam turvas, as poucas certezas que tinha.

Ele andou seus passos rápidos pela noite, criando um novo caminho.

Eu gostaria de dizer que ele foi bem-sucedido em suas empreitadas. Adoraria dizer que conheceu várias pessoas que fizeram parte da sua vida até o fim desta, e que manteve esplendorosamente os velhos amigos. Seria maravilhoso afirmar que ele encontrou pelo menos parte do que procurava em uma pessoa especial, e que ele mesmo se tornou muito melhor durante todo esse processo.

Seria excelente saber desses detalhes com precisão, mas seria saber do futuro. Cada parte dessa história ainda será construída. E eu espero continuar aqui pra contar o resto.

Continua... (?)

sábado, abril 03, 2010

Filho do Vento

12/08/08

E, ainda que sem vontade, ele não resiste ao impulso de, mais uma vez, dizer às paredes surdas que não é assim que funciona.

Que não é a sombra periférica que todos aqueles pobres diabos procuram, quando correm sob o sol, trabalhando e mantendo suas vidas (quando mantém as vidas luxuosas de outros).

Não é a sombra que passa pela alma dele quando ele percebe que muitas vezes foi infeliz, não por falta de chance ou recurso. Estava ocupado demais, correndo no sol e pelo motivo errado.

Não é a sombra que persegue e gira no seu eixo, enquanto ele corre no sol, o que ele procura.

Não tem nada a ver com trabalho, dinheiro, sucesso ou amor. Ele é a única sombra. Pincelada na paisagem, passando como trovão.

Sombra de si mesmo, refletida no suor gotejante. Que arde o olho. Só vê um borrão passando a metros por segundo.

Sua abstração, agora, é maior do que tudo isso, e ele só quer correr debilmente logo abaixo do rei, da bola de fogo. Por que ele quer, não por dever. Não hoje.

Nas pontas dos pés, ele mantém a velocidade máxima. O vento parece abrir caminho. O corpo curvado para frente percebe a poeira deixada para trás, desacreditado do que já fez, do que aguentou sem hesitar e sem parar de continuar.

Não há ruido em seus passos. O som em si, é uma lembrança. Mais uma sombra.

Agora ele tem paz. Ele vibra na frequência certa.

Só por hoje, ele não é um escravo de sua necessidade. E não há mais sombra, nem parada, nem obrigação.

Após ecoar sua satisfação nas paredes adjacentes..seguiu com o vento para o leste. Foi empurrado por ele. Adotado.

sábado, março 27, 2010

Nada

Post da época que eu fazia curso técnico (informática) de manhã e pré-vestibular a tarde. Machucava.

28/08/08

Nada mais do que um dia cansado.

Os olhos semi-abertos vendo o mundo girando e água sendo jogada na face magra, parecendo ter nada mais do que uma ou duas horas dormidas.

Nada além de caracteres digitados, funções utilizadas e abstrações feitas. Janelas abertas sem o vento entrando. Tudo bem abaixo do ar-condicionado, o frio cortando a garganta machucada, que tenta se esquentar por palavras de lábios ressecados a ouvidos congelados. Lógica utilizada pelos dedos rápidos, movidos pelas engrenagens neurais de apenas mais um iniciante. Pessoas chamam concentração de loucura, raciocínio de desequilíbrio.

Nada de cochilo, não há descanso. As cinzas da mente estacionam enquanto a paisagem passa, machucando os olhos, e o trem amarelo carrega seus escravos de sempre, em frente, sempre em frente, sempre em frente, sempre em frente. Olhos fundos e pernas automáticas percorrem o que resta do caminho, pegando o menor trajeto, fazendo trilhas pela grama baixa, dis(re)torcida.

Nem uma grama de falta de sono na mente nublada, abaixo do sol escaldante (não há sombra, lembra?). Só o vento parece querer ajudar.

A história é sempre a mesma, não importa o quão distante se encontra de seu eixo de rotação. O peso das pálpebras se mistura com a dor no pescoço. O norte tende a sul quando um sono sem sonhos se apressa em acordar sobre o braço dormente. Números infinitos surgem, formigando as mãos instigadas a se mover.

E ao vencedor, as batatas.

Ao fim do dia, horas extras.

Cercado da poeira dos livros antigos, voando de carros a blocos de geometrias estranhas, o diagonal quase caindo para o lado se esforça para não perder o foco. Nada de ângulos errados. Centrado.

E zero. Nada de mais.

Só mais um dia oblíquo pelo caminho torto.

Trem cheio como a cabeça. Catatonismo e, de repente, o lar.

Horas de minutos infinitos que passam na velocidade da luz, quase nao dando tempo de se dar conta do tempo (que é estranho, desde ontem).

E mais e mais letras. Palavras escritas ainda a pensar, e sentidos confusos.

Nada de mais, quando se faz o mínimo pra não ter mais que fazer nada. O mínimo pra nada mais precisar ser mais difícil do que já é.. e talvez no futuro, poder fazer quase menos do que tudo para ter bem mais do que nada. Só uma.

Uma respiração leve. Só o necessário.

E até lá, nada será tão necessário quanto o descanso. Que é tudo o de menos que se tem.

Um texto não é lido, e não é nada de mais.

A mensagem vazia foi dada.


Obrigado, boa noite.

Que você não sonhe nada.

domingo, fevereiro 21, 2010

O que é mesmo que se passa?

Por que eu não estou escrevendo?
Era o que eu me perguntava hoje, enquanto ajeitava algumas coisas da casa.
Andava de um lado pro outro com o fone no ouvido, ouvindo lembranças recentes, e pensava nisso.

A conclusão que cheguei: distúrbio psicológico oriundo de distração sentimental orientada à vácuo, totalmente sem motivo, forma, esperança, cor e gosto. Uma doença comum e que te atinge, você querendo ou não, como qualquer outra doença. Que faz você querer todo aquele cuidado especial, como qualquer doença. E que faz você parecer um completo idiota aos próprios olhos. Isso, nem toda doença faz.

É claro que, diante da minha desatual situação, deixar que tal bola de fogo (ou seria de feno?) me atingisse não poderia ter sido uma opção, mas rolar com esta por aí foi. Então não posso culpar ninguém além de mim mesmo, e não permito que culpem.
O fato é que, uma vez rodando nesta situação, não se raciocina direito. Sua razão passa a ser substituída por um algo que geralmente é difícil de identificar. Você tenta escrever pensamentos e teorias baseadas na razão, mas só sai.... isso. Resmungos, reclamações, sob o risco de riscar sua própria, e raramente boa, imagem real.

Você faz metáforas e jogos de palavras, e disfarça o significado propriamente dito do que se quer dizer, mas não diz. Por que já foi dito ou porque não precisa ser dito, e ninguém diz o contrário. E cada vez mais, cada linha que se escreve se embola como barbante, se dá nó, se amarra e quando finalmente você acha que jogou aquilo no ar, puxou a linha e é livre, lá está você: rodando como um peão, pronto pra parar em qualquer lugar, cair, e ser embolado em suas próprias linhas novamente. Talvez em outras mãos, que não as suas.

E percebe que está perdendo o sentido, enquanto escreve. Mas seus sentidos já estão perdidos a muito tempo. Você olha para cada palavra e não vê mais sentido, não vê explicação. Você mal ouve o que escreve, quando deveria estar olhando. E a sinestesia se espalha e atrapalha enquanto você vê o cheiro bom que vem com o vento, respira um gosto amargo e percebe que o que seu tato não vê a hora de tocar, é apenas uma visão longínqua do que ele não pode ter nem ler.

Então você abaixa a cabeça, escreve, e não faz sentidos.
E no fim, quando não está explicado o exato motivo de eu não ter escrito ultimamente, o motivo está obvio e muito bem descrito, embora não escrito. Embora não bem. Embora aqui, e não fácil de se entender, é legível, tangível e próximo.
Em cada dia, vê-se cada vez mais o motivo, e não vê-lo é quase um pecado à própria existência deste. E quando tudo isso passar, ele ainda estará ali, só não será mais o seu motivo.

Ou talvez seja, já que o sentindo parou de se fazer à tempos, largou na minha mão os seus significados e correu. Foi na direção do vento que leva a bola de feno e a de fogo. E só lá, sem escrever, eu tenho feito algum sentido.

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Metal Contra as Nuvens

1.
Não me entrego sem lutar
tenho ainda coração.
Não aprendi a me render,
que caia o inimigo, então.

2.
E nossa história não estará
pelo avesso assim,
sem final feliz.
Teremos coisas bonitas pra contar.

E até lá, vamos viver
temos muito ainda por fazer.
Não olhe pra trás.

Apenas começamos.

domingo, janeiro 24, 2010

É, talvez seu ombro só esteja sujo DEMAIS.

O rapaz ouvia a música. Batia levemente os pés acompanhando seu ritmo, e fechou os olhos pra se concentrar na letra.

Era uma bela canção, que falava sobre liberdade. Sobre fazer o que tem que fazer, derrubar os obstáculos. Romper as amarras. Um grande clichê, se você me perguntar; mas um que faz bastante sentido. A progressão da música o fez querer se mover, e ele apoiou o peso do corpo na outra perna, inquieto.

De longe avistou uma janela, que trepidava com o vento e a chuva lá fora. Um ar frio entrou pela imensa janela e encheu o cômodo, plantando nele um doce desejo correr e atravessá-la com um pulo, pousando no ambiente fresco do lado de fora.

Foi ao decidir romper a inércia que percebeu que era mais difícil do que pensava. Ele parecia estar preso. Não conseguia sair do lugar.

Olhou para os punhos: nada. Para os tornozelos: nada.

Procurou por cordas, correntes e até mesmo algo não-natural em volta de si. Não achou nada.

Bufou ao se sentir obrigado a olhar em volta, estava enjoado disso.

Seu olhar passou como vento pela sala e ele entendeu de imediato o que estava acontecendo: Ele estava totalmente livre, nada nele mesmo o impedia de simplesmente voar dali. Mas infelizmente, a sala estava cheia de gente à sua volta. Conhecidos e desconhecidos se misturavam ali. Todos vivendo suas vidas da forma que preferem, e todos amarrados. Como ele poderia sair do lugar se à sua volta havia tanta gente que simplesmente não se moveria? Como correria livre dessa forma?

Pensou em uma forma de avisá-los, mas não adiantaria. Alguns estavam amarrados por cordas, outros por correntes. Uns poucos tinham imensas bolas que aço que provavelmente eram o próprio peso de sua consciência. E nenhum deles notava a própria imobilidade.

Pensou bem, e o que todos aqueles tinham em comum eram a resposta para a metáfora.

A palavra veio fácil: medo.

Ele observava as pessoas e via cada medo. Eles estavam ali, escondidos totalmente a vista, e segurando cada um daqueles indivíduos agarrado no mesmo lugar.

Ah, claro. Agora você diz “é obvio, todos temos medo!”, e nós concordaríamos com você.

Mas o seu medo o impede de fazer o que te deixa feliz? Um risco faz você desistir totalmente de algo? Você baseia suas escolhas em um medo que você mesmo colocou (ou permitiu que os outros colocassem, o que é basicamente a mesma coisa) na sua cabeça?

Se você respondeu sim a alguma dessas perguntas, meus parabéns. Você corre o sério risco de estar nesta sala neste exato momento. E sabe o que mais? Não há ar-condicionado nela. Se você tiver coragem, vá lá fora e busque seu ar fresco, por que ninguém jamais fará isso por você. Seu medo é seu, e somente seu. O pó negro que todos nós temos que ter um pouco sobre os ombros, mas não o suficiente para fazer você curvá-los, como um derrotado por suas próprias escolhas.

O rapaz pareceu me ouvir, e já começou a se mover. Com um semblante tranqüilo, ele começa a achar a saída. Passando entre os medos dos outros e educadamente pedindo licença, ele ignora a imobilidade alheia e segue seu caminho.

Enquanto estamos sentados aqui, falando, o garoto atravessa a janela.