terça-feira, agosto 24, 2010

Magia: Nada nessa mão, nada nessa- ops.

Não houve tempo sequer de se ouvir o zunido da pequena haste pontiaguda cortando o ar. Só sentiu o impacto diretamente no peito, atravessando armadura de couro batido e roupa no caminho.

A flechada o deixou atordoado imediatamente, encarando a flecha parcialmente enterrada em seu tórax. A dor demorou a vir. O cheiro de sangue em madeira nova invadiu suas narinas enquanto ele ainda dava um passo pra trás, tentando manter o equilíbrio e o raciocínio.

Estava bebendo água no rio, de costas para um caminho que levava à floresta densa, mas parcialmente protegido por uma concentração de arbustos atrás de si. Lembrou de ter levantado, e virado de frente para o caminho, costas para o rio. Deu dois passos ao encarar algo que parecia ser o brilho de dois olhos e uma grande energia ruim entre a mata escura. Lembrou de sentir o desejo de morte vindo, e a flecha chegou ao seu destino.

Diretamente à frente, foi o que pensou. Parou para ouvir. Os passos leves do atirador não podiam ser ouvidos a essa distância, o que significava que ele era bom, pois atirara longe. O arqueiro teve que calcular a curva pelo vento, evitar o máximo de folhas e galhos das árvores no caminho. Além disso, deveria ser um homem bastante paciente, pois esperara até que o alvo estivesse em posição perfeita para o tiro, coisa que este alvo em especial não havia oferecido nos últimos dias.

Ferido, ele gritou de dor e deixou as pernas perderem seu equilíbrio, caindo para trás, fazendo uma bagunça entre os arbustos e as poças d’água próximas.

O arqueiro estava escondido em uma parte mais densa e escura da floresta, aguardando a chance certa. Mesmo na luz, seu capuz grande tampava todo o rosto, tornando impossível encarar o olhar fixo e implacável que se estampava naquele rosto no momento da caça.

Sobre um dos joelhos, com total equilíbrio e controle de cada músculo de seu corpo, viu a oportunidade (a primeira em dias) e atirou. Mirou um pouco para cima, calculando obstáculos e vento no caminho, e a flecha voou do arco absurdamente envergado.

Ouviu com alegria o grito agonizante que indicava o tiro certeiro. Empertigou-se imediatamente, como que fazendo uma pose vitoriosa para um observador inexistente. Sentia muito orgulho de si. Havia deixado o alvo confortável, achando que tudo estava bem. Por dias havia-o seguido e sabia bem que mesmo os mais espertos e experientes se acostumavam à sensação de estarem sendo vigiados se submetidos a ela durante muito tempo. E aí estava o resultado: mais um serviço bem feito. Bom, quase feito. Ainda eufórico, começou a andar, no intuito de terminar o serviço.

Carregava uma aljava com algumas flechas colada à perna direita, amarrada ali com tiras de couro, equipamento especialmente feito pra ele. Na outra perna, um pequeno bolso, também amarrado por tiras, onde ele deixava pequenas sacolas de couro com venenos e óleo para passar em flechas e atirá-las com fogo. Pôs a mão protetoramente sobre esse bolso e começou a correr para o alvo.

Correu em um caminho de parábola, não encarando diretamente o corpo do inimigo caído. Sempre fora cuidadoso assim mesmo com o alvo abatido. Chegar pelo flanco salvara sua vida várias vezes. Parou a poucos metros do alvo, separado do corpo por um arbusto denso, lembrou da recomendação de certo rei que o havia contratado: “Cuidado, magos são criaturas traiçoeiras. Usam tudo ao redor!”. Com o arco já pendurado em seu ombro, ele sacou sua adaga curta e curva, excelente para ataques rápidos ou para arremessar. Era excelente com essa arma. O mago estava muito debilitado e devia estar sem muita força vital, o que limitaria muito o poder de qualquer espécie de feitiço que usasse. Pensando nisso, se sentiu mais confiante e avançou para dar a volta no arbusto e transformar o corpo caído em um defunto.

No milésimo de segundo em que colocou os olhos no corpo cuja flecha estava atravessada no tórax, a adrenalina do campo de batalha tomou conta dos corpos de ambos, despertando os instintos guerreiros de cada um e levando-os a, nesse tempo mínimo, conseguirem total conhecimento do ambiente onde batalhariam.

À frente do arqueiro, um mato baixo e úmido. Três passos a frente estava o corpo do mago, com seu braço direito caído pra dentro dos arbustos e a cabeça encarando o topo das árvores altas, olhar vazio vidrado nos pequenos pontos por onde as copas das árvores permitiam a passagem da luz. Ele estava deitado e sua respiração, subindo e descendo no peito, era muito lenta, quase imperceptível.

O arbusto denso se estendia até o seu lado direito também, e assim ele observava sua caça caída com a cabeça diretamente à sua frente.

E então uma faísca na mão esquerda do mago, enquanto ele estalava os dedos. Não, a faísca estava nele, em sua perna esquerda! Pior, no bolso onde estava seu equipamento inflamável!

Ele xingou alto e atirou a adaga na mão esquerda do mago, a que produzia o fogo, enquanto pulava para trás, para o rio. Droga! Maldito! Acabara de queimar seus tão raros óleos e o fogo estava se espalhando pelo couro de sua armadura leve, já tendo atingido seu cinto de adagas. Ausente ao grito de dor do arcano atingido na mão, o arqueiro se desfez rapidamente do peitoral de couro e mergulhou no rio raso, levantando rapidamente e batendo com as mãos na perna esquerda ainda quente.

Encharcado, levantou a cabeça já sem capuz para encarar o mago de forma desafiadora.

- Respeito você pelo último esforço, arcano. Mas você está fraco e agora sua mão esquerda já não serve pra nada. É o fim, você perdeu.

Sua resposta foi uma tosse que lembrava de longe uma mínima risada.

Deu um passo para frente. Mais dois passos e sairia do rio, mais três passos e terminaria com aquela caça e seria um homem rico.

- Seus passos fazem um tremendo barulho quando dentro de um rio, mercenário – Disse a voz incrivelmente jovem do mago, com tom de quem se divertia.

E então não houve tempo para mais nada. Uma bola de luz se moveu rápido de dentro dos arbustos, acompanhando a mão direita do mago, e de lá veio um clarão. Ouviu um trovão ensurdecedor enquanto a luz atirava-se como uma lança de eletricidade diretamente para seu corpo encharcado. A luz foi sua última visão antes que o mundo se tornasse escuro.

O mago nem sequer precisou olhar para atingir seu alvo, muito menos para conferir se este estava vivo ainda, pois obviamente não estaria. Estava completamente molhado, e pelo som que fez ao andar, o rio devia estar meio palmo abaixo de seu joelho. Só precisou atirar o raio que havia conjurado sob a distração do fogo e a cobertura dos arbustos, na direção que ouvia. A água em volta fazendo o resto do serviço.

Por alguns segundos ouvia o corpo do assassino tremendo freneticamente antes de finalmente bater na água rasa. Suas últimas palavras haviam sido o som de seu maxilar batendo com força enquanto a corrente elétrica atravessava o corpo.

Cuspiu sangue e finalmente se entregou à dor da flecha enterrada no peito e da mão atravessada pela adaga, provavelmente envenenada. Cairia, mas seu inimigo iria junto com ele para o fim. Calculou que o fim para si não levaria mais do que alguns instantes.

Não repensou sua vida. Não se arrependeu de nada do que fez. Não houve túnel nem luz enquanto cerrava os olhos. Enquanto fechava seus olhos para este mundo, ouviu o barulho de cascos batendo com força e ritmo veloz, tremendo o chão sob si mesmo. Seria o cavaleiro da morte de quem ouvira falar?

Tudo escureceu e não houve mais como pensar ou saber nada.

Os cascos pararam ao seu lado. E não houve mais nada.

sexta-feira, agosto 20, 2010

A Arte de Continuar

Os cascos de seu cavalo negro escorregavam no chão enlameado e irregular enquanto ele cavalgava veloz. O vento forte machucava os olhos e desprendia as lágrimas. Precisava chegar rápido, não podia se atrasar nem um minuto que fosse. Não poderia perder essa chance, talvez a única chance.

Subiu a colina e observou o campo à sua frente. Kilometros de campo aberto e de mato alto e uma descida pouco íngreme o separava de seu destino. Ao longe, podia ver a chuva forte que caia. Sempre a chuva.

Podia sentir o cheiro da chuva enquanto continuava a cavalgada desenfreada. A grama aos joelhos de sua montaria passava em um borrão verde e a terra espirrava para trás do cavalo. O alazão não se assustava nem com os trovões mais fortes, bem como seu cavaleiro. Os clarões eram encarados como dádivas, davam força para continuar a empreitada e completar a missão.

As muitas horas, talvez dias, de corrida contra tempo, clima e cansaço finalmente terminavam. Já podia encarar o imenso portão de madeira que dava passagem através da muralha. Na parte baixa, na altura da cabeça de um homem, havia um grande escudo marcado com a grande cabeça de um leão, como que observando e avaliando a coragem daqueles que se aproximavam.

Foi um esforço para parar o grande cavalo em frente ao portão. Ele parecia querer continuar para sempre.

O homem, com a roupa molhada e suja, mas um ar vitorioso, encarou o portão. Desmontou, apertou mais a fivela do cinto que carregava a espada e andou até o portão. Bateu três vezes no escudo.

A espera pareceu de meses. A chuva se transformou em tempestade e o frio se intensificou. A noite caiu e o dia se fez e ele continuamente tentou de várias formas abrir o portão, até que finalmente uma pequena fresta se abriu com um barulho enorme e palavras pesadas foram ditas.

De cabeça baixa, o cavaleiro voltou à sua montaria e cavalgou até que sua cabeça pudesse se levantar.

Os cascos de seu cavalo negro escorregavam no chão enlameado e irregular enquanto ele cavalgava veloz.

terça-feira, agosto 10, 2010

Trovão que não se ouve não existe

O barulho alto da chuva o deixou louco. Seu tilintar ritmado no teto da varanda e o som da rua sem asfalto sendo atingida pelas gotas eram a sinfonia perfeita para o momento.

Todos aqueles pensamentos guardados secretamente, alguns até de si mesmo, pareceram vir à tona. Foi como se passassem do gasoso para o líquido de repente, ocupando menos volume e pesando mais.. querendo escorrer pela cabeça. Querendo se juntar à correnteza criada pela chuva.

Estava pesado, muito pesado. Precisava falar ou colocar tudo pra fora de alguma forma.

Colocou a si mesmo pra fora.

Saiu na chuva grossa sem medo. Os pingos grossos já o atingiam antes que terminasse de abrir o primeiro portão, causando um pequeno estranhamento de temperatura em seu corpo. Ao atravessar o portão que largou escancarado, ele se livrou da sua blusa. Abraçou a chuva de peito aberto, mergulhou no som dos trovões.

Ria de seu comportamento enquanto ia ao segundo portão, que dava saída pra rua. Era sempre assim, não importando a época. Mergulhava quando queria algo. Quando tinha esse algo, mergulhava mais ainda, de cabeça, aproveitando cada instante. A cabeça, que tanto usava pra pensar demasiadamente sobre tudo, abria o espaço e, ponta de lança, cortava o caminho a se seguir. O coração dizia a direção e o espírito agüentava todo o dano que vinha como faca afiada em sua direção, dilacerando até orgulho em seu caminho.

Mas o mergulho sempre continuou. Apesar das dores, cortes e cicatrizes (mesmo que nem sempre obvias ou mesmo visíveis), da pressão aumentando quanto mais fundo ele fosse, ele continuava. Um mar de acontecimentos bons e ruins estava a sua volta enquanto durasse o mergulho, mas ele fora o mestre do otimismo e da coragem. Continuava, sempre, em frente, sempre em frente, sempre em frente, como o trem que se prende aos trilhos do caminho escolhido (até mesmo repetindo analogias).

A chuva, depois de encharcar rapidamente os cabelos castanhos, escorria do rosto aos ombros, parte caindo diretamente ao chão, parte escorrendo pelos braços e tórax. Era uma sensação excepcional. A cascata gelada descia pelo corpo provocando uma espécie de choque no caminho, provendo energia. Dando coragem e resistência por onde passava.

Parou de pensar e só se concentrou naquele momento singular, mesmo que já repetido algumas vezes.

O peso no peito passava, o nó na garganta se desfazia.

Os sentidos melhoravam. O olfato, geralmente deplorável, agora sentia um agradável perfume que incitava à busca de sua origem. O paladar estava deixando de sentir o gosto amargo de instantes atrás. A visão clareava e os olhos não se incomodavam com a chuva, de forma alguma. Um ímpeto vindo do instinto o fez se mover.

Postou-se a correr. Como se suas pernas fossem guiadas para o bom caminho, ele corria no ritmo de uma respiração rápida e compassada. Depois de meia hora correndo e tentando não escorregar na chuva, enfrentando lugares enlameados que exigiam força para se passar, o cansaço deveria ter chegado. Mas não chegou. Por muito tempo não houve cansaço, e por muito tempo ele não descansou.

Sempre fora assim. Ao primeiro sinal de que as coisas estavam bem, numa fagulha de felicidade, debilmente ele ia em frente, com tudo que tinha.

Não descansou até perceber que precisava. E quando percebeu, cansou. Sua energia foi a zero imediatamente. Nenhum espírito é tão forte assim, garoto. Vê se aprende. – era o que rodava em sua mente numa voz pouco mais grave que a própria.

Neste momento ele piscou e se viu parado exatamente do lado de fora do primeiro portão. Não havia corrido um centímetro, nem saído para o dilúvio da rua. A chuva forte começava a estremecer seu corpo.

Achou que estava ficando bem. Teve esperanças nessa chuva perfumada onde estava, pra onde fora atraído. Não era a sua primeira vez e não seria a ultima em um acontecimento desses, pensou. Listou mentalmente todas as coisas que tinha na cabeça, e se deu conta que não botara nada pra fora. E estava tudo exatamente do mesmo jeito.

A mesma falta de vontade. Ou seria de força?

Como que sentindo medo, seu espírito machucado tremia com força sob a chuva. E o garoto tentava decidir: voltar pra casa vazia, se enxugar e esperar a próxima chuva ou abrir o portão e enfrentar a tempestade lá fora?

Essa decisão tem alguma coisa a ver com seu estado atual?

Ele acordou cheio de perguntas a si mesmo e sentindo o vento frio vindo da janela. Apalpou ao seu lado a parte sempre vazia da cama, buscando ali algum conforto. Costume idiota. Vazio. Só isso. Idiota.