terça-feira, agosto 10, 2010

Trovão que não se ouve não existe

O barulho alto da chuva o deixou louco. Seu tilintar ritmado no teto da varanda e o som da rua sem asfalto sendo atingida pelas gotas eram a sinfonia perfeita para o momento.

Todos aqueles pensamentos guardados secretamente, alguns até de si mesmo, pareceram vir à tona. Foi como se passassem do gasoso para o líquido de repente, ocupando menos volume e pesando mais.. querendo escorrer pela cabeça. Querendo se juntar à correnteza criada pela chuva.

Estava pesado, muito pesado. Precisava falar ou colocar tudo pra fora de alguma forma.

Colocou a si mesmo pra fora.

Saiu na chuva grossa sem medo. Os pingos grossos já o atingiam antes que terminasse de abrir o primeiro portão, causando um pequeno estranhamento de temperatura em seu corpo. Ao atravessar o portão que largou escancarado, ele se livrou da sua blusa. Abraçou a chuva de peito aberto, mergulhou no som dos trovões.

Ria de seu comportamento enquanto ia ao segundo portão, que dava saída pra rua. Era sempre assim, não importando a época. Mergulhava quando queria algo. Quando tinha esse algo, mergulhava mais ainda, de cabeça, aproveitando cada instante. A cabeça, que tanto usava pra pensar demasiadamente sobre tudo, abria o espaço e, ponta de lança, cortava o caminho a se seguir. O coração dizia a direção e o espírito agüentava todo o dano que vinha como faca afiada em sua direção, dilacerando até orgulho em seu caminho.

Mas o mergulho sempre continuou. Apesar das dores, cortes e cicatrizes (mesmo que nem sempre obvias ou mesmo visíveis), da pressão aumentando quanto mais fundo ele fosse, ele continuava. Um mar de acontecimentos bons e ruins estava a sua volta enquanto durasse o mergulho, mas ele fora o mestre do otimismo e da coragem. Continuava, sempre, em frente, sempre em frente, sempre em frente, como o trem que se prende aos trilhos do caminho escolhido (até mesmo repetindo analogias).

A chuva, depois de encharcar rapidamente os cabelos castanhos, escorria do rosto aos ombros, parte caindo diretamente ao chão, parte escorrendo pelos braços e tórax. Era uma sensação excepcional. A cascata gelada descia pelo corpo provocando uma espécie de choque no caminho, provendo energia. Dando coragem e resistência por onde passava.

Parou de pensar e só se concentrou naquele momento singular, mesmo que já repetido algumas vezes.

O peso no peito passava, o nó na garganta se desfazia.

Os sentidos melhoravam. O olfato, geralmente deplorável, agora sentia um agradável perfume que incitava à busca de sua origem. O paladar estava deixando de sentir o gosto amargo de instantes atrás. A visão clareava e os olhos não se incomodavam com a chuva, de forma alguma. Um ímpeto vindo do instinto o fez se mover.

Postou-se a correr. Como se suas pernas fossem guiadas para o bom caminho, ele corria no ritmo de uma respiração rápida e compassada. Depois de meia hora correndo e tentando não escorregar na chuva, enfrentando lugares enlameados que exigiam força para se passar, o cansaço deveria ter chegado. Mas não chegou. Por muito tempo não houve cansaço, e por muito tempo ele não descansou.

Sempre fora assim. Ao primeiro sinal de que as coisas estavam bem, numa fagulha de felicidade, debilmente ele ia em frente, com tudo que tinha.

Não descansou até perceber que precisava. E quando percebeu, cansou. Sua energia foi a zero imediatamente. Nenhum espírito é tão forte assim, garoto. Vê se aprende. – era o que rodava em sua mente numa voz pouco mais grave que a própria.

Neste momento ele piscou e se viu parado exatamente do lado de fora do primeiro portão. Não havia corrido um centímetro, nem saído para o dilúvio da rua. A chuva forte começava a estremecer seu corpo.

Achou que estava ficando bem. Teve esperanças nessa chuva perfumada onde estava, pra onde fora atraído. Não era a sua primeira vez e não seria a ultima em um acontecimento desses, pensou. Listou mentalmente todas as coisas que tinha na cabeça, e se deu conta que não botara nada pra fora. E estava tudo exatamente do mesmo jeito.

A mesma falta de vontade. Ou seria de força?

Como que sentindo medo, seu espírito machucado tremia com força sob a chuva. E o garoto tentava decidir: voltar pra casa vazia, se enxugar e esperar a próxima chuva ou abrir o portão e enfrentar a tempestade lá fora?

Essa decisão tem alguma coisa a ver com seu estado atual?

Ele acordou cheio de perguntas a si mesmo e sentindo o vento frio vindo da janela. Apalpou ao seu lado a parte sempre vazia da cama, buscando ali algum conforto. Costume idiota. Vazio. Só isso. Idiota.

Um comentário:

Sr. Filangie disse...

Excelente.