terça-feira, outubro 05, 2010

Muralha - Cap. II

Essa é a segunda parte de uma história que eu escrevi e postei alguns dias atrás.
Sim, ela é grande pra cacete. E sim, a parte anterior também é. Mas eu asseguro que a leitura é fácil e rápida.
De qualquer forma, caso haja realmente interesse, aconselho que leia a primeira parte desse conto se quiser entender alguma coisa do que está acontecendo.

Você pode ir diretamente pra lá:

Se tiver coragem, boa leitura.


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(...)

Desci rapidamente os lances de escada que levavam até o térreo onde o portão se abriria. Comecei a pensar em como começar alguma conversa com os bandidos, como fazê-los entender que foi um grande erro ameaçar a nossa cidade. “Oi caras maus, vocês acabam de fazer a pior merda de suas vidas vindo aqui bater no portão da minha cidade e incomodar o meu tão raro sono! Meus parabéns! Tickets para os quintos dos infernos para todos! Venham pegar!” – Nah. Não sou esse tipo de cara. Fazer ameaças de motherfucker... não é o meu estilo.
Talvez eu fosse só esperar que eles me irritassem o suficiente pra que eu fosse violento. Mas isso também não era muito a minha cara. Sou bastante pacífico. De qualquer forma, lutar irritado não ia me favorecer.

Enquanto eu pensava, me surpreendi ao me ver de frente ao portão. Desci rápido demais, não deu tempo de pensar em diálogo. Talvez eu devesse só ir direto ao ponto.

Finalmente acenei para cima, onde eu sabia que tinham sentinelas e que eles passariam a mensagem pra lá. Um giro com a mão, dedo indicador apontando pra cima – “Manda ver” era como diziam antigamente. Bem antigamente mesmo.

Um estalo metálico alto e os grandes portões de metal foram se afastando, se arrastando para o lado, pra dentro da muralha espessa. Abriram o suficiente para uma pessoa passar.
O sol ainda não saía no horizonte, então de onde eu estava ainda era escuro. A gangue ainda não me via, mas eu os via.
Droga, o líder com a arma acabava de se colocar atrás de três dos cabeludos, e um deles era o do machado. Não daria pra atacar ele primeiro.

Andei até o lado de fora.

No alto da muralha, na sala de comando, Milena respirava fundo. O portão já estava meio aberto e logo eu passaria para fora. Ela cruzou os dedos e apertou os lábios em uma linha reta. Eu não vi nada disso. Mas sei. Somente sei. Logo ela correria da sala e iria se juntar aos arqueiros na muralha.

Cheguei do lado de fora da muralha e esperei o portão se fechar atrás de mim antes de dirigir a palavra a algum deles. Todos pareceram apreensivos e surpresos por apenas um homem ter saído da fortaleza.

O trovão produzido pelo portão se fechando pareceu acordá-los de seu transe, e o líder se pronunciou:
- Hahaha! Só mandaram você aqui pra negociar nossa entrada? Ou esses caipiras acham que somos canibais e mandaram um sacrifício? Hahahahaha! – sua risada foi copiada pelo resto do bando.
- Eu agradeço se você puder parar de rir, seu bafo podre deve estar incomodando meus arqueiros no alto da muralha – apontei pra cima com a cabeça.
Todos eles olharam pra cima e suas risadas murcharam.
O líder cuspiu no chão para o seu lado e me olhou desafiador.
- Seus arqueiros? Então, senhor-lider-e-sacrificio, o senhor deve saber que essas porcarias não vão acertar a gente aqui, não com isso – apontou para placas de metal que eles carregavam penduradas nos ombros. Imitações de escudo.
- Minha intenção é que eles peguem algum idiota de vocês que tentar fugir. – falei paciente.
Eles olharam uns pros outros.
- Idiota? Não conhecem essa palavra? – eu provoquei. Jurava que um deles começava a espumar pela boca.
- Bom, parece que você veio querendo confusão não é, rapazinho? – falou a voz grossa do homem do machado. Eu tinha sérias dúvidas de que ele sequer sabia como proferir sons. – Deixa eu acabar com esse aqui, chefe? – ele se virou para o cara da arma.
- Vai em frente! Hahaha! Ele que sirva de exemplo para os outros caipiras.

Ajeitei minhas mangas. Não saquei a espada ainda. Ela não seria muito útil contra um machado desse tamanho. Eu teria que ser esperto e utilizar outros recursos.

O grandão fechou a cara e partiu em carga com seu machado levantado, vindo em linha reta.
Muito fácil.
Seu machado descreveu um arco totalmente reto em direção ao meu corpo, e provavelmente me partiria ao meio se eu tivesse ficado no mesmo lugar. Esperei até o último instante para desviar e esquivei para trás e pra esquerda, na diagonal, só arrastando os pés. Meus braços se moveram como relâmpagos enquanto duas adagas voavam das minhas mangas e atingiam a mão direita do grandalhão.

O grito dele foi alto e pareceu ser mais assustador que os ferimentos que foram causados nele. Sua mão direita agora era inútil e seu machado estava fincado no chão onde eu deveria estar.
Ele ainda tentava virar na minha direção quando meu pé voou na lateral de seu rosto. Consegui sentir o maxilar dele estalando e no instante seguinte o homem estava estatelado no chão levantando bastante poeira. Esse talvez não acordasse mais, dependendo do quão resistente ele era ao veneno que eu costumava colocar nas minhas adagas.

Só mais oito.

Os dois da frente, ainda de olhos arregalados, tentavam sacar suas pistolas. Se eu bem me lembro, uma das regras de combate era não mostrar desespero. O oponente perde respeito pela sua habilidade. Esses dois com certeza estavam desesperados. Deviam estar a mais de uma semana sem usar suas drogas da confiança.

Até agora tudo tinha sido tão rápido que ninguém sequer tinha tentado usar sua imitação de escudo.

Com quatro passadas rápidas eu me coloquei entre os dois, que mal puderam me ver saindo do meio da poeira, não fosse o rastro que deixei no ar. O da esquerda se afobou e tentou atirar, mas sua arma falhou. Sem pólvora, como eu previ.

Sorrindo, me lancei para o da direita, não querendo arriscar que esse disparasse também. O bastardo ainda não tinha levantado a arma quando eu o atingi com uma cotovelada no queixo. Suas pernas fraquejaram imediatamente e eu segurei seu corpo pelo braço estendido em cima do meu ombro, apontando a arma dele para o bandido cuja arma não funcionava. Testei o gatilho e BLAM, essa sim funcionava. Mal, mas funcionava.
O tiro atingiu o rapaz no peito e o derrubou com um baque doloroso.
Pelo cheiro no ar, percebi que eram balas de sal. Deve ter machucado pouco mais do que a queda, mas ele era um viciado fraco e permaneceu no chão.

Eu ainda segurava o dono da arma, que já parecia desmaiado no meu ombro. Tudo estava parecendo mais fácil do que eu tinha imaginado. Talvez esses patifes nunca tivessem enfrentado um combate de verdade.
Por cima do ombro do desmaiado, vi o chefe apontando sua própria arma para mim. Mas eu estava com as costas protegidas pelo cabeludo desmaiado e senti dois impactos nas costas. Os impactos coincidiam com o som alto dos estouros da arma do chefe sendo disparada.
O cheiro de pólvora ficou forte no ar, misturado ao odor do sangue e suor do defunto às minhas costas.

“Bom, já foram duas balas. Falta uma.”

Arremessei o corpo molenga no atirador e tive tempo de notar a formação à minha volta: Três deles abatidos. O chefe com uma bala na arma e ainda caindo com o defunto em cima de si. Mais cinco vindo com facões nas mãos. Dois são punks cheios de piercings, três cabeludos, um deles não sabe nem segurar o facão direito. O outro mal consegue colocar uma perna na frente da outra pra correr. Me senti enfrentando uma trupe de crianças com pedaços de isopor na mão.

O primeiro punk do moicano era o mais rápido e cruzou espadas comigo primeiro. Não que ele realmente tenha percebido que eu tinha sacado minha espada, dada a expressão de surpresa dele antes de ser atingido por um chute veloz na virilha enquanto as espadas soltavam um som agudo no ar.
Passei por esse só com esse chute e encarei os próximos dois segurando minha espada com as duas mãos.

A falta de organização de batalha deles me fez sentir vergonha de ser um ser humano por uns instantes. Eles atacaram ao mesmo tempo, e tudo que eu tive que fazer foi rolar entre os dois para que eles chocassem de leve seus facões enferrujados. Tive espaço atrás deles, e o líder começava se levantar.
Mas a vantagem era minha: haviam três idiotas servindo de escudo entre mim e a arma do líder deles.

Quando terminei o rolamento, o outro punk, com o facão um pouco menos enferrujado, me esperava com uma cara de prazer sádico. Seu braço baixou a lâmina veloz contra meu ombro esquerdo, mas ela nunca encostou nele.
Usando minha espada como um escudo, eu interceptei a lâmina inimiga ao mesmo tempo em que levantava com o impulso de um pulo. O arranhar da katana soltando faíscas por toda a extensão do facão terminou no grito de dor do rapaz enquanto perdia os dedos que seguravam a arma. Por sorte minha espada só pegou de raspão em seu rosto, fazendo um aranhão reto ali, mas nada grave.

Não tive tempo de finalizar este também, já que o último dos rapazes já me atacava.

O ataque veio duas vezes com rapidez, e percebi que esse tinha o mínimo de treino com a arma que usava. Talvez fosse um açougueiro antes de ser um maldito viciado que entrou pra uma gangue de derrotados em alguma cidade podre. Seus ataques eram retos e ele tinha o braço forte.

Usei o primeiro ataque pra ganhar espaço na direção da moto, passando do lado dele. Consegui me virar agora e encarar a distância que eu percorri enfrentando os rapazes.
Agora eu estava de frente pra todos novamente, lutando com esse último enquanto os outros iniciavam outro ataque. Eu tinha que acabar com ele rápido antes que todos me cercassem demais. Ao fundo, o último homem, o chefe, tentava mirar com sua arma, mas os outros ainda tampavam sua visão. Ao menos ele tinha sido esperto suficiente para pegar seu escudo se proteger de uma possível chuva de flechas.

Os ataques sucessivos e agressivos do último continuavam, enquanto eu pensava em como acabar com todos de um modo mais rápido.
Decidi acabar logo com esse que estava dando trabalho.

Comecei a atacar pra testar a habilidade de defesa desse. Ataquei pelos lados, como quem corta um mato alto pra ganhar espaço. Ele se defendeu bem da maioria dos ataques. Com uma espada na mão esse cara poderia ser perigoso, mas a espada estava em minhas mãos e eu tinha a vantagem do alcance maior. Soltei um chute veloz por baixo do sobretudo e ele conseguiu se afastar um pouco, então usei a vantagem da espada para dar um corte fundo no antebraço dele. Ataquei com a espada só na mão esquerda e estoquei, produzindo o corte que imediatamente começou a sangrar generosamente.
Por um instante ele olhou para o braço, e foi tempo demais. Seu cérebro deveria já estar comprometido pelas drogas, e ele demorou muito a reagir.
Chutei sua mão e o facão voou de leve, sendo agarrado pela minha mão direita, e finalizei a luta com um giro e dois cortes grandes no tórax do corpo que caía.

O sangue dos cortes ainda voava durante o giro enquanto eu observava dois deles vindo na minha direção, já bem próximos.
Depois desses, só o chefe armado. Um deles ficou um pouco para trás tentando não pisar nos corpos a sua frente.

Dei uma passada larga para a direita, ficando de frente para os dois atacantes e ainda protegido da mira do chefe lá de trás.

Os dois na minha frente já tinham mostrado que não sabiam como usar uma arma branca, e tudo foi confirmado no momento em que atacaram.

Um deles tentou me atacar pelo lado esquerdo enquanto eu media forças contra seu companheiro, utilizando minhas duas armas como uma tesoura.
Um sorriso quase aparecia no seu rosto quando ele percebeu que não havia me acertado. Seu ataque foi interceptado pela ponta de minha bota, onde havia uma placa de metal especialmente localizada pra esse tipo de situação. O impacto fez a lâmina inimiga voar para cima em um ângulo esquisito, e os dois se assustaram com a trajetória dela.

Foi tempo suficiente pra que minha “tesoura” atravessasse a defesa do inimigo e destruísse qualquer capacidade dele de respirar.

Ignorei o atacante que tentava recuperar seu facão enferrujado e disparei na direção do chefe armado, que agora não tinha nenhum empecilho em sua mira.
Disparei com uma fúria súbita, correndo em ziguezague com a katana posicionada nas costas do meu braço e o facão em riste na outra mão. Joelhos flexionados e postura curvada dando impressão de uma bala indo na direção do inimigo.
O assustado projeto de líder tentava mirar a arma enquanto recuava para mais perto da muralha. O escudo que protegia a cabeça e as costas tremia, e a falta de equilíbrio dificultava mais ainda a mira. Ele não queria perder o tiro e não queria ser atingido por uma carga de fúria como a que ele testemunhava.
Ele deu mais um último passo pra trás quase tropeçando e com uma face que duvidava se eu era louco ou não e que por isso temia desesperadamente por sua vida.

Bradando a vitória, eu berrei “AGORA!” enquanto arremessei o facão contra o homem armado.
E com vários sons de madeira pontiaguda cortando o vento, o combate finalmente terminou.

O líder deu um salto estranho para o lado para desviar do facão que mirava seu tórax e não teve tempo de sequer atirar. Ele largou o escudo na tentativa de não dar de cara com o chão ao se jogar. Neste momento ele se tornou um alvo para meus arqueiros no alto da muralha, e o sinal estava dado.

Apenas três flechas o atingiram. Ele estava perto demais da muralha, e aquele tiro tinha um ângulo muito difícil. Era necessário ficar em pé em cima do muro e mirar quase para seus pés para acertar. Só os mais experientes e corajosos sequer tentariam.

Olhei pra cima curioso e identifiquei os arqueiros que haviam atingido o chefe da gangue. Eu esperava apenas duas flechas nele, e não me surpreendi ao ver Milena e Jorth em pé na muralha com arcos nas mãos. Ao lado deles, essa sim a surpresa, estava o rapaz que me acordou. O que tinha os joelhos tremendo.

Os outros arqueiros haviam feito uma peneira com o homem que eu havia deixado para trás enquanto tentava alcançar seu facão. Seu corpo como um porco-espinho e sua arma em uma posição estranha perto de seu braço.

Me voltei para o campo de batalha e fui até as motos.
Nos compartimentos nos carrinhos das três motos eu encontrei uma coleção bizarra de itens estranhos de metal com utilidade duvidosa, a maioria provavelmente para machucar pessoas e preparar as drogas que eles usavam.
Também encontrei vários pedaços estranhos de carne que talvez seja humana e coisas que não gostaria de narrar.

No fim, a única coisa útil que encontrei foi exatamente o que procurava: cordas.

Quando os portões se abriram, Jorth foi o primeiro a sair e correr até onde eu estava.
- O que você está fazen- Aaaah, sim. – Ele logo respondeu a própria pergunta. – Vai jogar as motos penhasco abaixo com eles amarrados nelas.
- Bom, você pode me processar por poluir o rio lá abaixo do penhasco se quiser. – respondi, me divertindo.
- Eles eram caras horríveis mesmo não é? – Ele constatou ao revistar os compartimentos que eu já havia revistado.
- Eram a escória. O pior tipo de gente que existe, e talvez a maioria do que existe.
Ele se calou com um semblante sério.
- Você pode terminar aqui pra mim? – falei de repente. – depois peça pra uns sentinelas levarem essas porcarias até o penhasco. Talvez seja bom eles encararem um pouco da realidade fora das muralhas.
Não esperei resposta pra me dirigir para dentro da cidadela.

Fui surpreendido por um abraço repentino no instante em que atravessei o portão, quase achando que tinha caído em uma armadilha.
Um beijo nos lábios e um cheiro maravilhoso fizeram-se entender e eu relaxei no abraço.
- Isso foi perigoso demais! Eram nove! – A voz de Milena falava baixo da boca colada no meu pescoço.
- Eles lutavam como crianças e isso era obvio. Além do mais, eu precisava de me exercitar um pouco, to ficando destreinad- Ei, quer parar com esses tapinhas?
- Pe-ri-go-so! - ela disse cada sílaba separada por um tapinha no braço.
Já sorrindo, eu entrei em uma espécie de transe ao encarar o rosto maravilhoso dela. A luz que agora entrava diretamente do portão aberto atrás de mim reluzia nos olhos verdes dela, e evidenciava sua cor. Era um verde claro e forte, que não podia ser ignorado seja qual fosse o momento em que seu olhar passasse pelo rosto dela. Era pra onde eu olhava quando queria simplesmente parar de pensar. Encarava aqueles olhos por horas e o tempo que se passava nunca era perdido.

- Senhor? – uma voz me acordou de repente.
- Ah, você. Sempre me acordando – falei amistosamente. A voz dele não tremia agora.

Ele me encarava com uma expressão de quem sentia orgulho demais de si mesmo pra sequer reparar no que eu estava dizendo. Eu podia ter dito “Oi, vou te matar neste instante só por que eu to entediado, ok?” e ele continuaria com a mesma expressão besta.

- Obrigado pela chance, senhor. Agora eu entendi o meu trabalho, e não vou ter mais medo. – Ele proferiu num tom sério de quem tinha ensaiado discurso.
Eu sorri largamente. Com um certo incômodo, larguei o abraço de Milena para colocar as mãos nos ombros do rapaz. Ele merecia.
- Todos têm seu teste pessoal, rapaz. Que confere se você está realmente preparado para a vida que escolheu. E me parece que você passou no seu. Qual é o teu nome, rapaz?
- É Ulric, senhor.
- Pois então Ulric. Sentinela Ulric. Bem-vindo à muralha.

2 comentários:

Míope sem óculos disse...

MORE!

Anônimo disse...

Tu teve alguma inspiração no cenário do filme "Livro de Eli"? Lembra bastante. Se nunca viu, veja! Muito bom.

Awesome job, by the way. Mande mais.