Não houve tempo sequer de se ouvir o zunido da pequena haste pontiaguda cortando o ar. Só sentiu o impacto diretamente no peito, atravessando armadura de couro batido e roupa no caminho.
A flechada o deixou atordoado imediatamente, encarando a flecha parcialmente enterrada em seu tórax. A dor demorou a vir. O cheiro de sangue em madeira nova invadiu suas narinas enquanto ele ainda dava um passo pra trás, tentando manter o equilíbrio e o raciocínio.
Estava bebendo água no rio, de costas para um caminho que levava à floresta densa, mas parcialmente protegido por uma concentração de arbustos atrás de si. Lembrou de ter levantado, e virado de frente para o caminho, costas para o rio. Deu dois passos ao encarar algo que parecia ser o brilho de dois olhos e uma grande energia ruim entre a mata escura. Lembrou de sentir o desejo de morte vindo, e a flecha chegou ao seu destino.
Diretamente à frente, foi o que pensou. Parou para ouvir. Os passos leves do atirador não podiam ser ouvidos a essa distância, o que significava que ele era bom, pois atirara longe. O arqueiro teve que calcular a curva pelo vento, evitar o máximo de folhas e galhos das árvores no caminho. Além disso, deveria ser um homem bastante paciente, pois esperara até que o alvo estivesse em posição perfeita para o tiro, coisa que este alvo em especial não havia oferecido nos últimos dias.
Ferido, ele gritou de dor e deixou as pernas perderem seu equilíbrio, caindo para trás, fazendo uma bagunça entre os arbustos e as poças d’água próximas.
O arqueiro estava escondido em uma parte mais densa e escura da floresta, aguardando a chance certa. Mesmo na luz, seu capuz grande tampava todo o rosto, tornando impossível encarar o olhar fixo e implacável que se estampava naquele rosto no momento da caça.
Sobre um dos joelhos, com total equilíbrio e controle de cada músculo de seu corpo, viu a oportunidade (a primeira em dias) e atirou. Mirou um pouco para cima, calculando obstáculos e vento no caminho, e a flecha voou do arco absurdamente envergado.
Ouviu com alegria o grito agonizante que indicava o tiro certeiro. Empertigou-se imediatamente, como que fazendo uma pose vitoriosa para um observador inexistente. Sentia muito orgulho de si. Havia deixado o alvo confortável, achando que tudo estava bem. Por dias havia-o seguido e sabia bem que mesmo os mais espertos e experientes se acostumavam à sensação de estarem sendo vigiados se submetidos a ela durante muito tempo. E aí estava o resultado: mais um serviço bem feito. Bom, quase feito. Ainda eufórico, começou a andar, no intuito de terminar o serviço.
Carregava uma aljava com algumas flechas colada à perna direita, amarrada ali com tiras de couro, equipamento especialmente feito pra ele. Na outra perna, um pequeno bolso, também amarrado por tiras, onde ele deixava pequenas sacolas de couro com venenos e óleo para passar em flechas e atirá-las com fogo. Pôs a mão protetoramente sobre esse bolso e começou a correr para o alvo.
Correu em um caminho de parábola, não encarando diretamente o corpo do inimigo caído. Sempre fora cuidadoso assim mesmo com o alvo abatido. Chegar pelo flanco salvara sua vida várias vezes. Parou a poucos metros do alvo, separado do corpo por um arbusto denso, lembrou da recomendação de certo rei que o havia contratado: “Cuidado, magos são criaturas traiçoeiras. Usam tudo ao redor!”. Com o arco já pendurado em seu ombro, ele sacou sua adaga curta e curva, excelente para ataques rápidos ou para arremessar. Era excelente com essa arma. O mago estava muito debilitado e devia estar sem muita força vital, o que limitaria muito o poder de qualquer espécie de feitiço que usasse. Pensando nisso, se sentiu mais confiante e avançou para dar a volta no arbusto e transformar o corpo caído em um defunto.
No milésimo de segundo em que colocou os olhos no corpo cuja flecha estava atravessada no tórax, a adrenalina do campo de batalha tomou conta dos corpos de ambos, despertando os instintos guerreiros de cada um e levando-os a, nesse tempo mínimo, conseguirem total conhecimento do ambiente onde batalhariam.
À frente do arqueiro, um mato baixo e úmido. Três passos a frente estava o corpo do mago, com seu braço direito caído pra dentro dos arbustos e a cabeça encarando o topo das árvores altas, olhar vazio vidrado nos pequenos pontos por onde as copas das árvores permitiam a passagem da luz. Ele estava deitado e sua respiração, subindo e descendo no peito, era muito lenta, quase imperceptível.
O arbusto denso se estendia até o seu lado direito também, e assim ele observava sua caça caída com a cabeça diretamente à sua frente.
E então uma faísca na mão esquerda do mago, enquanto ele estalava os dedos. Não, a faísca estava nele, em sua perna esquerda! Pior, no bolso onde estava seu equipamento inflamável!
Ele xingou alto e atirou a adaga na mão esquerda do mago, a que produzia o fogo, enquanto pulava para trás, para o rio. Droga! Maldito! Acabara de queimar seus tão raros óleos e o fogo estava se espalhando pelo couro de sua armadura leve, já tendo atingido seu cinto de adagas. Ausente ao grito de dor do arcano atingido na mão, o arqueiro se desfez rapidamente do peitoral de couro e mergulhou no rio raso, levantando rapidamente e batendo com as mãos na perna esquerda ainda quente.
Encharcado, levantou a cabeça já sem capuz para encarar o mago de forma desafiadora.
- Respeito você pelo último esforço, arcano. Mas você está fraco e agora sua mão esquerda já não serve pra nada. É o fim, você perdeu.
Sua resposta foi uma tosse que lembrava de longe uma mínima risada.
Deu um passo para frente. Mais dois passos e sairia do rio, mais três passos e terminaria com aquela caça e seria um homem rico.
- Seus passos fazem um tremendo barulho quando dentro de um rio, mercenário – Disse a voz incrivelmente jovem do mago, com tom de quem se divertia.
E então não houve tempo para mais nada. Uma bola de luz se moveu rápido de dentro dos arbustos, acompanhando a mão direita do mago, e de lá veio um clarão. Ouviu um trovão ensurdecedor enquanto a luz atirava-se como uma lança de eletricidade diretamente para seu corpo encharcado. A luz foi sua última visão antes que o mundo se tornasse escuro.
O mago nem sequer precisou olhar para atingir seu alvo, muito menos para conferir se este estava vivo ainda, pois obviamente não estaria. Estava completamente molhado, e pelo som que fez ao andar, o rio devia estar meio palmo abaixo de seu joelho. Só precisou atirar o raio que havia conjurado sob a distração do fogo e a cobertura dos arbustos, na direção que ouvia. A água em volta fazendo o resto do serviço.
Por alguns segundos ouvia o corpo do assassino tremendo freneticamente antes de finalmente bater na água rasa. Suas últimas palavras haviam sido o som de seu maxilar batendo com força enquanto a corrente elétrica atravessava o corpo.
Cuspiu sangue e finalmente se entregou à dor da flecha enterrada no peito e da mão atravessada pela adaga, provavelmente envenenada. Cairia, mas seu inimigo iria junto com ele para o fim. Calculou que o fim para si não levaria mais do que alguns instantes.
Não repensou sua vida. Não se arrependeu de nada do que fez. Não houve túnel nem luz enquanto cerrava os olhos. Enquanto fechava seus olhos para este mundo, ouviu o barulho de cascos batendo com força e ritmo veloz, tremendo o chão sob si mesmo. Seria o cavaleiro da morte de quem ouvira falar?
Tudo escureceu e não houve mais como pensar ou saber nada.
Os cascos pararam ao seu lado. E não houve mais nada.
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