Gritava com uma garganta arranhada, produzindo um som rouco, mas muito, muito alto. Era ensurdecedor.
Não sabia bem por que; A cabeça doía, o corpo parecia fraco. Algo em seu corpo tremia involuntariamente, mas a velocidade com que corria não o permitia identificar o que era. Ele era um borrão na paisagem que um dia fora urbana. Um raio em linha reta, entre os escombros.
Sentia uma espécie de raiva, uma fúria guardada com tanto zelo que mal a reconhecia.
Essa raiva se agarrava naquele corpo veloz, quase arrancando sua pele enquanto se deslocava. Pesava.
Adicionando peso, havia uma tristeza estranha. Não a conhecia mais, também, apenas sentia. Sua massa supressora pressionava o coração, que a essa altura parecia pequeno e quase incapaz.
Como ele conseguia correr assim? Ele não tinha vontade. Não sentia vontade de nada naquele momento. Apenas continuava em linha reta, corpo curvado, pernas se movendo a sei lá qual freqüência, pés quase não tocando o chão.
E então não estava. Era o mundo que corria embaixo dele. Uma sensação esquisita de falta de controle sobre as coisas, sobre si mesmo. Não era acostumado com essa sensação, mesmo que não fosse exatamente nova para ele. Enfim.
Sua visão embaçada não focava de jeito nenhum, não parecia captar tudo que se passava ao seu redor. A audição era quase nula, embora muito barulho acontecesse. O mundo parecia estar com algum problema. Parecia menos real... menos real do que um sonho.
Uma preocupação descomunal atacava sua mente, o coração acelerava e o estomago queimava como a fogueira que carboniza a carne no enterro de um guerreiro, levando aquele corpo cansado para o infinito.
Era muita coisa acontecendo, muito para sua mente. O cérebro começava a pifar, esquecia de funcionar direito. Esquecia. Esquecia de si...
Veio a dor. Atravessava o crânio desprotegido, sacudindo-o com tamanha leveza que um observador mal perceberia qualquer movimento. Era quase em câmera lenta.
Assim como o mundo. Era tudo tão rápido, e tudo tão lento. Parecia um filme que passa rápido demais e que só se percebem alguns quadros. Assimilar está difícil, devagar. Cada imagem demora a fazer sentido.
Os sentidos estão confusos.
Confuso, confuso. Uma tontura generalizada parece invadir o rapaz. Ele está cambaleando, capotando, caindo. A câmera em primeira pessoa capta o chão/horizonte/céu/mãos/poeira/céu/chão e pronto. A tosse confirma que ainda existe um chão abaixo, e é poeirento. Tossiu novamente, ainda rouco. Só então percebeu que tinha finalmente parado de gritar.
Se apoiou nos braços enfraquecidos e içou o corpo até estar sentado.
Decidiu que pra onde olhava era “pra frente”, e teve certeza que estava olhando para frente. Meio vesgo e totalmente débil, via algo se aproximando. Voava em sua direção. Parecia vir rápido, mas não chegava. Só estaria ali de repente, cravado nele, fosse o que fosse.
Nada estava explicado, a confusão do mundo era tal que parecia impossível conseguir respostas para qualquer coisa. Ele tentava definir novos conceitos para o que seus sentidos captavam, em busca de uma explicação. Mania essa de querer entender.
Tateava chão, concreto, espinhos de alguma planta. Sentiu dor. Conhecia a dor, e se sentiu feliz por conhecer algo. Se sentiu triste logo depois.
Algo estava errado, e talvez fosse tudo.
Turbilhão turvo. Então o nada. Precisou e adormeceu.