Saindo do breu de um beco úmido, seus passos ecoando um som de borracha em lama, ele tira um objeto prateado do bolso e expõe à garoa. O som do isqueiro abrindo, libertando uma pequena chama ao vento forte, é como o toque de um pequeno sino em meio ao ritmo ditado pela goteira que incomoda a metros de distância.
Ele pára e encosta na parede ao fim do beco, observando calmamente a chama que não se apaga sob a garoa, perseverante.
Olhando sobre o ombro, para a escuridão de onde saiu, ele nota que a pequena chama ilumina fracamente um círculo envolta, rachando com destreza uma pequena parte da sombra que ficou para trás. Voltando ao fogo, lembra-se.
Um cavaleiro, veloz, cavalga sobre um campo verde com poucas árvores. Já foi espada e escudo.
Já defendeu amigos e também já falhou nisso. Já foi escudo para si mesmo, e lança também. Já atacou seu objetivo sem pensar, ignorando toda a dor causada pela peleja infinita e absurda. Lutou sem causa, sem orgulho. Pisou em cima de sua própria razão e por vezes cuspiu sangue em sua face no espelho, escondendo ali a cara machucada e infeliz que não admitia o erro. No coração, continuava sendo um cavaleiro.
Havia se desfeito de sua armadura há muito tempo. O peso que o defendia o tempo todo não era necessário. Agüentou, por tempos, dores que não eram suas. Foi bom com aqueles que buscavam nele algum conselho, amizade ou carinho. Também buscava os mesmos em pessoas e, intencionalmente ou não, foi bom na troca.
Mas seu espírito ia ficando cansado. As constantes batalhas, muitas que somente ele tomou conhecimento, muitas consigo mesmo, desgastaram sua vontade.
Ele pisca finalmente, olhos lacrimejando, e na visão turva se repete o momento em que abandonava sua espada. Quando escolheu trocar o bom combate pela artimanha. Por um tempo antes disso, já não era o mesmo. Já não tentava tanto ser melhor, evoluir. A bainha agora carregava uma adaga, polida pelas vontades e cravada com rubis que davam uma estranha sensação de liberdade, acompanhada por um sorriso que poderia um dia ser vil. Tinha o potencial.
Por um tempo, seguiu o caminho mais curto. Andou pelas sombras, fez coisas das qual não se orgulhava. Seu orgulho, inclusive, ficava escondido. Difícil de alcançar até pra ele mesmo. A visão, por vezes embaçada na luz, caía pro lado e não o reconhecia no espelho. Observava os próprios olhos com dificuldade e via sua silhueta, contornada por um ar inflamável. A cara de olheiras roxas e barba por fazer atirava cansaço e quase quebrava o vidro fino que prendia sua dignidade. Não gostava de algumas atitudes suas, mas continuou no caminho torto, apesar dos avisos que já chegavam aos seus ouvidos atentos.
O ar inflamável à sua volta começava a queimá-lo. Mas precisava seguir mais um pouco. Acostumado idiotamente a ir até o limite, ele continuou.
Personificou o contrário do que era.
Decepcionou, decapitou sua própria razão, e seguiu somente a vontade. Decepcionou, denegriu seu próprio manto de honra, já manchado e rasgado, antes ostentado pelo esforço.
Nada que encontrou no caminho oblíquo durou. Mas o que é que dura nessa vida?
Piscou novamente. A chuva, agora forte, o acordava dessa vez. A mínima chama do isqueiro prateado continuava acesa, de alguma forma mágica. Encarou-a com avidez. Esperava algum sinal, mas este já estava dado. Esteve jogado em sua face o tempo todo. Nunca havia saído dali, só ele havia escolhido ignorar.
Fechou o isqueiro com ímpeto, quase prendendo o próprio dedo. O som metálico ecoou por todo o beco e, apesar da chuva já forte, produziu o som de metal batendo em metal, como lâminas se combatendo. Desencostou da parede onde estava. Tinha que se mover. Sacudiu um pouco da água acumulada em seu casaco e colocou o capuz.
Soprou um pouco de vapor ao começar a caminhar. Agora faria um caminho novo. Iria inventar. O improviso lhe cairia bem enquanto recuperava a dignidade e honra que estavam turvas, as poucas certezas que tinha.
Ele andou seus passos rápidos pela noite, criando um novo caminho.
Eu gostaria de dizer que ele foi bem-sucedido em suas empreitadas. Adoraria dizer que conheceu várias pessoas que fizeram parte da sua vida até o fim desta, e que manteve esplendorosamente os velhos amigos. Seria maravilhoso afirmar que ele encontrou pelo menos parte do que procurava em uma pessoa especial, e que ele mesmo se tornou muito melhor durante todo esse processo.
Seria excelente saber desses detalhes com precisão, mas seria saber do futuro. Cada parte dessa história ainda será construída. E eu espero continuar aqui pra contar o resto.
Continua... (?)